Num artigo no Público, Eduardo Lourenço avalia o “tempo de Soares” face ao mundo actualmente bem diferente do que constituiu o labor político da vida de Mário Soares.
E refere-se angustiado à divisão da esquerda na actual campanha para a eleição presidencial, comparando os seus possíveis efeitos aos da trágica e tristemente célebre Batalha de Alfarrobeira.
Mas não conta com o impossível que o realismo dos poetas e a aspiração de muitos cidadãos exige: a escolha do Presidente da República pode ser à segunda volta!
Nesse caso, como se espera que muito boa gente espere, a esquerda só poderá unir-se e reforçar-se; assim cairá a hipótese inteligente de Eduardo Lourenço, tributária de grande apreço e interpretável legitimamente como expressão de desencanto e inevitabilidade, perda e lamento, desespero na busca da dignidade que os apoiantes de Mário Soares bem merecem e o próprio bem carece no seu estertor contra si próprio e contra o facto inexorável de já não haver o tempo de Mário Soares.
E não é uma questão de idade, pelo contrário, aparenta bem, demonstra vitalidade, fôlego e persistência, tem uma vida dedicada ao combate político e não parece esmorecer na tenacidade; é mesmo o tempo, bem como a realidade e as circunstâncias, que lhe fogem e de que ele, porventura sem o perceber, também foge e se afasta, serôdio, ao agarrar-se ao lado mais sinistro, interesseiro e caciqueiro de uma máquina partidária a que já não pertence, que já não lhe pertence e que não lhe pagará favores como ele bem reclama à boca do cofre eleitoral.
E tem toda a responsabilidade nisso, a vários títulos: foi governante e presidente, teve as mais altas responsabilidades do Estado e do PS, sem ter contribuído como devia para a desejável e necessária renovação, de ideias, de pessoas e de métodos; as ideias recusam-se a comparecer - nem o PS consegue descortinar as razões que a razão desconhece para o apoiar; os métodos são os mesmos da perseguição e marginalização dos que têm ideias próprias e pensam pela própria cabeça; quanto às pessoas já se vê, pelo seu próprio exemplo enquanto candidato oficial de quarta escolha do PS: quem foi o homem novo que ele e os demais responsáveis do Estado e do PS prepararam e ajudaram a afirmar-se para oferecer à esquerda e ao país a merecida renovação? nenhum coelho saiu de tal cartola, tiveram que usar o porco espinho, veja-se bem a adesão que consegue e a desunião que a sua propositura pelo PS causou à esquerda, onde nenhum candidato desiste apesar do franco (mas de duvidoso espírito democrático) apelo feito pelos mais altos responsáveis do PS!
E porquê a referência a Alfarrobeira? é de facto genial a lucidez de Eduardo Lourenço, de uma clareza exemplar - a divisão da esquerda, juntamente com a pobreza das respectivas propostas partidárias e falta de apoio institucional da única candidatura sem apoio partidário (de um cidadão, como manda a Constituição) acalenta a ideia de que a união à direita pode fazer a força de uma dinâmica vitoriosa!
É um conceito de leitura complexa e parte do pressuposto, psicológica e sociologicamente fundamentado, de que muitas pessoas preferem votar no candidato vencedor a experimentar estar do lado errado dos sucessos da política durante todo um ciclo, sabendo que a política é hoje implacável para com os perdedores, negando-lhes acesso a lugares e bem estares, tal como antes na guerra se eliminava ou escravizava os vencidos; por isso muitos eleitores sacrificam as suas convicções ou sequer a reflectir o suficiente para determiná-las com fundamento, optando por votar cínica mas pragmaticamente no candidato que antecipam como vencedor.
Por esta via, a divisão da esquerda pode fazer a esquerda perder ou perder-se.
É este o caminho que leva Eduardo Lourenço a Alfarrobeira - e Medeiros Ferreira, no seu artigo no DN, nada entendeu, esvaziando e confundindo como muitos a construção culta e hábil de um nosso grande pensador.
Quais luzes de D. Pedro? não era a isso que se referia Eduardo Lourenço!
Era a própria noção de autodestruição, sem tomar partido na antiga batalha nem equiparar - oh horror - qualquer dos intervenientes a nenhum dos actuais candidatos; também Medeiros Ferreira está perdido no tempo: como é possível comparar Mário Soares ao antigo regente afastado, diabolizado e trucidado pelo seu sobrinho e genro, depois que assumiu o poder o Rei D. Afonso V ?
E se fosse possível, que utilidade teria ? os conceitos civilizacionais (de que os dois contendores eram portadores, representantes ou vítimas) que então se degladiavam não servem de comparação ao mundo, aos dilemas e aos problemas de hoje... e como é que isso se encaixaria, apenas por raciocínio, numa eleição com seis candidatos? Soares é apoiado por um forte aparelho partidário, pelo partido que está no poder, usando e abusando da máquina, das armas e de figuras do Partido, do Governo e do Estado, beneficiando de meios avultados logísticos e financeiros - o infante D. Pedro estava dessapossado e, pelo contrário, era o Rei que detinha o poder, os meios e as armas.
Que raio de comparação, mero lapso ou monumento à ignorância e à ligeireza na utilização da bandeira inimiga pode resistir a um mínimo de análise, caso a mereça por parte de algum exegeta mais dedicado à pedagogia que a perder tempo com a política de tais políticos argumentadeiros, mais papistas que o Papa, como Medeiros Ferreira ao tentar por na boca de Eduardo Lourenço o que este inteligentemente não disse nem quis dizer.
De todo o modo, quer o bom argumento e excelente raciocínio de Eduardo Lourenço quer o azarado dislate do glosador incidental falham na explicação do actual estado da campanha presidencial - e oxalá não se concretize o mau agoiro de nova Alfarrobeira do país ou da esquerda.
Na realidade, a candidatura de Manuel Alegre vai ganhando adeptos e entusiastas na proporção com que Cavaco Silva perde a tal dinâmica a olhos vistos todos os dias.
E as pessoas vão a pouco e pouco lembrando que ainda estão a pagar segunda e terceira vez as auto-estradas de duas faixas inauguradas na véspera de cada eleição e logo refeitas e depois alargadas com que Cavaco Silva desperdiçou as fortunas que Portugal recebeu da Comunidade Europeia durante os seus Governos, era Mário Soares Presidente. E essa memória faz pensar melhor, se calhar não basta dar o voto ao mais presumido que presumível vencedor antecipado.
Talvez estejamos perto de uma dimensão de retorno dos pragmáticos cínicos à realidade da escolha racional e afectiva do melhor candidato - se os tais eleitores (e são muitos) que se colocam sistematicamente do lado que antecipam como vencedor (e só por isso votam nele) começam a hesitar ou mesmo a perceber que Cavaco Silva pode não ganhar, então dedicar-se-ão genuinamente à escolha do seu candidato preferido, repartindo-se por outros ou pelos vários candidatos, esvaindo-se afinal a dinâmica de vitória do candidato inicialmente percebido como vencedor.
Quebrada essa barreira, Cavaco Silva poderá ser deixado à sua sorte na segunda volta.
E aí renasce o sonho e enterram-se as Alfarrobeiras!!!
Pois numa segunda volta toda a esquerda apoiará Manuel Alegre, que eventualmente passará a contar também com os tais votantes sistemáticos no possível vencedor - volta-se o bico ao prego!!!
É na semente do sonho que estamos hoje!!!
Como não pode ser maior, Portugal tem que ser melhor: mais livre, justo e fraterno!
Vamos pregar um Alegre susto ao Cavaco?
E mudar Portugal !!!
observacoes sao bem vindas
Anexo: os textos sob comentário
(não tive tempo de o fazer mais sintético nem de encontrar os links)
O tempo de Mário Soares, por Eduardo Lourenço (excertos),
«A campanha eleitoral não tem sido exactamente aquele torneio político exemplar que alguns idealistas impenitentes sonharam. Faltou-lhe paixão e sobraram escusadas flechas em forma de boomerang. [...] Trazer para esta sociedade, mais do que nunca sociedade de espectáculo, o eco da antiga paixão portuguesa, quer a recalcada do antigo regime, quer a exaltada e exaltante das duas décadas após Abril, era uma aposta arriscada, para muitos perdida e, em todo o caso, objectivamente quixotesca. Filho desses dois tempos, de que foi actor político precoce e, depois, personagem histórico, Mário Soares ousou trazer de novo para uma arena pública, já longe desses tempos turbulentos, essa antiga paixão política, sem querer saber se estaria ou não fora de estação. Passada a surpresa, esta audácia quase juvenil do antigo Presidente da República foi recebida com cepticismo por muitos, com sarcasmo por outros e, sobretudo, como uma ocasião inesperada para ajustar contas antigas e menos antigas com o homem que, melhor do que ninguém, de entre os activos, se identificou e é identificado com a Revolução de Abril e, em particular, com o tipo de democracia que ela instaurou em Portugal. [...] O mundo é que não é exactamente o mesmo mundo onde essa aventura pessoal e transpessoal foi possível. E esse mundo tinha de mudar, não o homem Mário Soares, mas a imagem dele no espelho alheio. O mesmo homem que, em tempos, passou entre nós como “o amigo americano” quando isso significava que o destino da nossa frágil democracia implicava alinhamento com a primeira das democracias ocidentais, aparece, hoje, aos olhos dos que têm interesse em cultivar essa vinha, como “antiamericano”, o que é, naturalmente, ainda mais simplista do que a antiga etiqueta. A única verdade desta valsa ideológico-mediática é clara: o antigo mundo que foi, durante décadas, o do horizonte da luta política de Mário Soares, funciona em termos de repoussoir — e Mário Soares, mais fiel aos seus ideais de sempre do que se diz, aparece, em fim de percurso, mais à “esquerda” do que nunca o foi. [...] Este tempo de Mário Soares não é apenas o tempo de Mário Soares. É o de várias gerações que, como ele, num mundo então histórica, ideológica e culturalmente dividido entre “direita” e “esquerda”, não apenas no Ocidente mas à escala planetária, escolheu um campo, numa época em que não escolher era ficar fora, não apenas do combate político, mas do combate da vida. É inócuo e só na aparência, prova de imaginária lucidez, pensar que esse comportamento releva de uma versão simplista e maniqueísta do mundo. Essa era a textura do mundo e da história que nos coube viver e só quem pretende viver fora deles se imagina sobrevoá-los como os anjos. É uma bela aposta a de Mário Soares, perdida ou ganha. Com a sua carga romanesca e a sua trama paradoxal. Mário Soares não é — nem a título histórico, nem ideológico — toda a esquerda portuguesa, mas nunca foi mais representativo dela, da sua utopia e das suas inevitáveis miragens, do que hoje, quando, aos oitenta anos, se apresenta como alguém, dentro dessa escolha, susceptível de incarnar ainda, melhor do que ninguém, essa velha aposta que entre nós nasceu com Antero e teve em António Sérgio, entre outros, as suas referências culturais, infelizmente mais vividas com sugestões poéticas do que propriamente políticas. Dizem-me que os dados há muito estão lançados e mesmo que os jogos estão feitos. Não o duvido. [...] Os seus adversários neste combate inglório e soberbo foram sempre outros. Não só os que se lembram do seu militantismo juvenil, como os que não esquecem a sua conversão definitiva ao socialismo democrático, mas, sobretudo, os que nunca lhe perdoaram o ter lutado pela democracia em Portugal, antes e depois de Abril. É isso que a verdadeira direita não esquece. É muito mais gente do que se supõe. É a mesma que põe na sua conta, como uma mancha indelével, a absurda culpa de ter “perdido” uma África que ninguém “perdeu” senão ela. [...] A esquerda não o traiu, nem ele se traiu nela. O drama é que essa esquerda de que pela última vez se faz paladino é, ao mesmo tempo, uma realidade — embora ideologicamente recente — e uma quimera. O problema da esquerda nunca foi a direita [...] mas a esquerda mesmo como pura transparência da história. A esquerda, sendo em intenção mais virtuosa, não é menos opaca, no seu angelismo imaginário, que a mais obtusa direita. Sobretudo quando não se dá conta disso. Em alegoria caseira, estas nossas eleições tão consensualmente democráticas, ilustraram com suavidade à portuguesa esta fatalidade. O combate no interior da nossa suicidária esquerda foi, à sua maneira incruenta, uma espécie de Alfarrobeira política. Talvez algum cronista, no futuro se inspire nela para nosso ensino inútil. Ou um poeta. Mas não terá Mário Soares.»
Eduardo Lourenço desvenda , por Medeiros Ferreira
Histórico artigo, o de Eduardo Lourenço hoje no Público. A Alfarrobeira política para onde a esquerda caminha em losango permeável só será evitável se o eleitorado a salvar. Escusado dizer que quem personifica as luzes que o infante D. Pedro transportava para Portugal é, hoje mais do que nunca, Mário Soares. Como escreve Eduardo Lourenço Mário Soares nunca esteve tanto ao serviço da esquerda. E houve quem quisesse perturbar e ocultar isso com palavras e obras.
Mas a mais sonora palavra será a dos votantes.
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