2018-02-01

delírio flagrante

“Rui Rangel conseguiu escapar à detenção, porque a lei não permite a detenção preventiva de juízes fora de flagrante delito”

é claro que o caso suscita antecipações televisivas à realização de diligências policiais ou de investigação criminal - infelizmente demasiado habituais entre nós: antes dos visados saberem, já lá está um tripé, ou mais, de câmaras de estações de televisão, convenientemente avisadas com antecedência sobre a atuação de profissionais afetos à administração da justiça - e, por arrastamento aliás pretendido e conseguido, primeiras páginas de jornais e um chorrilho interminável de comentários opinativos e condenatórios, tudo em sumário e sem estribeiras
mas, dispensando agora analisar seja o que for do assunto em questão, vejamos uma parte do tal efeito manipulatório pretendido com a expressão enviesada e multiplicada na comunicação social, nas redes digitais e nas conversas de café, tudo conseguido contra a ética, a boa fé, as boas práticas de direito processual penal e as leis do País, nomeadamente a Constituição:

- a detenção de quem não foi condenado terá de ser sempre uma exceção muito bem fundamentada; só nos regimes policiais totalitários e ditatoriais se pratica a detenção de pessoas não condenadas; no caso em questão, a forma de exprimir é muito enviesada: "conseguiu escapar" é formulação completamente abusiva: 99,99% da população não é sujeita a detenção fora de flagrante delito, sem que para o efeito tenha de "conseguir escapar" - essa é afinal a regra democrática e constitucional que distingue a civilização da barbárie, ou seja, é assim por norma, por boa prática e, felizmente, acontece todos os dias à quase totalidade das pessoas!

- a regra é, precisamente, ninguém ser detido sem antes ser condenado em processo justo, ou seja, com amplas oportunidades de exercício dos seus direitos de defesa, começando por ser acusado de algum comportamento previsto na lei como crime; ora, neste caso, não há nenhuma acusação de que alguém possa defender-se, portanto a boa regra é a de ninguém ser preso sem antes ser condenado, mediante acusação adequada e correspondente, além de exercer o seu irre; é o caso das situações de flagrante delito; nas ditaduras mais odiosas e em vários casos, também odiosos, em ambiente democrático, é infelizmente vulgar a polícia ou algum inspetor iníquo proceder à detenção de alguém com "droga" no bolso ou "notas" numa gaveta ou etc., etc., etc., convenientemente lá postas por alguém de má fé ou em situações difíceis de esclarecer num primeiro momento; por exemplo, pode prender-se alguém não condenado nem sequer acusado, em situação de "perigo de fuga" - ora, é público e notório que esse expediente foi usado vezes demasiadas contra quem não estava a fugir mas a chegar ou nas suas deslocações habituais; mas uma vez detida, a pessoa fica desde logo prejudicada gravemente, pela privação da liberdade sem possibilidade de defesa (sem julgamento, nem sequer nenhuma acusação) e, para agravar muito a situação, tal é executado perniciosamente ante as câmaras da televisão, com o objetivo inconfessado e ilícito de humilhar o visado; mas atenção, não é só o detido que fica lesado, toda a sociedade é vítima; no caso em apreço, mais uma vez, antes de acusação, defesa, julgamento e eventual condenação, como a Constituição do País manda, foram realizadas buscas em locais onde estavam os tripés das televisões, previamente avisadas para o efeito, antes dos visados ou dos mais elementares procedimentos democráticos do processo penal de um ordenamento jurídico civilizado; pode parecer uma coisa de somenos, sobretudo quanto não conhecemos ou até antipatizamos com a vítima; o problema é que podemos ser nós; os nossos vizinhos, filhos, amigos, etc. e só então então daremos valor a quem durante gerações e gerações se bateu contra a arbitrariedade e conseguiu a aprovação de leis justas e garantias processuais democráticas, nomeadamente a regra (aliás, em vigor em Portugal) de ninguém ser preso sem julgamento justo, incluindo acusação, defesa e condenação...

- bastaria dizer-se que «ao ser-se juiz, [mesmo] essas razões particulares deixam de se poder aplicar.»; pelo contrário, o que se atoarda é "conseguiu escapar"; ora, cada um de pelo menos 99,99% dos portugueses "conseguiu escapar", felizmente os detidos, legal ou ilegalmente, contra a boa regra, são menos de 0,01%, mas a realidade é completamente diferente do que deliberadamente e por má fé se exprime; dá a impressão de que alguém fez alguma coisa para "conseguir escapar", o que não é verdade; a regra é ninguém ser detido sem prévia acusação, defesa, julgamento e condenação; "conseguir escapar" inculca malevolamente a ideia de que a vítima elaborou uma tramóia para beneficiar ilicitamente de um favor a que os demais cidadãos não têm direito - errado: é a regra e para se aplicar a regra ninguém tem de conseguir nada nem fazer nada nem escapar de nada; a expressão é completamente abusiva, tanto mais que é formulada por quem tem ao seu alcance meios de formação e de informação e um dever de cuidado na informação a veicular, pretendendo porém algo que nada tem a ver com cuidado nem com formação nem com informação; azar o nosso

ou seja, resumindo muito: há situações em que a lei prevê, excecionalmente, a detenção de pessoas não condenadas e, com mais ou menos abusos policiais, tal corresponde a uma permilagem ínfima das situações e das pessoas - pelo que a maioria das pessoas pura e simplesmente não é detida, por mera aplicação correta da lei e não por “conseguir escapar”

a realidade é que não havendo justificação para aplicação de uma medida excecional, as pessoas não são detidas - não havia razão para detenção, pelo que não houve detenção, tudo o resto é desonestidade intelectual propositada


observações são bem vindas, obrigado ;_)))