2004-10-26

Clara e o contraditório

a título de mera interrogação, pergunto-me se estaremos a deixar progredir (mais) um equívoco, a propósito da vulgarização do conceito de contraditório; talvez por (de)formação jurídica de muit(íssim)os dos intervenientes, sobretudo de entre os mais recentes, após zurzida para lamentar de um Senhor Ministro sobre o monólogo dominical do Senhor Professor Marcelo, creio que se desvirtuou completamente o sentido da antiga (no meu caso, de há anos, mas lembro-me de outros, como por exemplo o Senhor Professor Vital Moreira, já em causa mas na era pré-blogostórica) reclamação ou exigência de contraditório, caindo-se em patente confusão

primeiro, requeria-se contraditório ao Senhor Professor Marcelo por se considerar que estaria em (pré-)campanha eleitoral, para cargo indefinido mas de alta posição no Estado - Primeiro-Ministro, pois foi chefe de partido de poder; Presidente da República, pois que adoptou em tempos atitudes suficientemente ambíguas, no mínimo, para legitimar a atribuição muito generalizada da condição de candidato

ou seja, era a (ex)posição especial de usar de tribuna confundível com tempo de antena encapotado que abria o flanco à exigência de contraditório, para atenuar uma vantagem competitiva desleal de que não beneficiavam outros (pseudo)candidatos, assumidos ou nem por isso; razão porque caía mal o privilégio e se pedia que se dispusesse ao contraditório, tal como aliás se exige a quem exerce o poder

presentemente, a exigência de contraditório vem rotulada em moldes totalmente distintos, exigindo-se-lhe agora por comentar desenfreadamente os episódios dos membros do governo

ora, em política (em direito e sobretudo na prática forense e administrativa, o contraditório tem ainda a ver com a procura de restabelecimento da igualdade de armas entre contendores, enfim, para permitir o confronto, ainda que por vezes só a título formal, de posições e perspectivas diferentes, mas tem também subjacente a ideia de permitir alguma forma de intervenção à parte contra quem é proferida uma acusação, instância, decisão, etc., ou seja, o contraditório é contra a parte mais forte) o contraditório é tipicamente exigível para vigiar, fiscalizar e moderar o exercício do poder - ou seja, há contraditório quando se permitem meios de acção, argumentação e prova contra a posição "oficial" dos titulares do poder, estes por definição dotados de meios de execução e influência

escusado será acrescentar que o contraditório é condição mínima, mas não suficiente, de democracia; e é precisamente por isso que é necessário que a democracia se alimente de contraditório, interpelando os titulares do poder e denunciando o seu exercício abusivo

é para isso que servem os comentadores, os cronistas, os analistas, os editoriais - quer na perspectiva estritamente política, para demonstração da plausibilidade e até justeza ou virtude de soluções alternativas, abordagens diferentes, necessidade de contextualização, etc, quer na perspectiva jurídica, examinando a legalidade e regularidade dos actos em que se traduz os exercício do poder, ou ainda na novel análise e avaliação económica das decisões jurídicas e políticas, obrigando os detentores do poder a justificarem os fundamentos e a racionalidade das suas medidas e opções, ou a arcarem com o ónus da sua ausência ou desproporção

concluindo, creio que em política há contraditório se houver críticos, ainda que se excedam - contra o excesso político basta ao detentor do poder demonstrar a legitimidade política dos seus actos; contra outros excessos há meios adicionais, de direito, desde que merecedores de tutela - e não há contraditório, ainda que haja comentadores e comentários, se não houver críticas ! eis o equívoco !!

se houver livre opinião e crítica, ainda não estamos seguros de que haja democracia; se não houver jornais e jornalistas livres, estamos seguros de que não há democracia

e depois de ver (Eduardo Cintra Torres, no Jornal de Negócios, entre outros) escrito que ia uma santaneta para o Diário de Notícias, fazer o jeito ao Governo, é de louvar a coragem de Clara Ferreira Alves, ao recusar a Direcção do periódico da PT, digo, do Marquês, afirmandio que não é ela quem mais fica a perder ...

espero bem que já me tenhas dito, Clara

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