2011-02-26

levitar



a arte de levitar é de muito difícil domínio, bem sabemos, reservada que está a raros eleitos, santos ocidentais ou ascetas orientais e pouco mais

mas pode acontecer, entre nós, simples mortais

há dias, numa sessão da versão nacional dos concursos caça-talentos actualmente em voga, um dos concorrentes apresentou-se ao júri, ao público e ao vexame televisivo, anunciando o seu propósito de ... levitar!

a coisa ia enroupada em truques de magia de trazer por casa e, com a prestimosa colaboração da apresentadora, a dado ponto surgia o número propriamente jametinhasdito da levitação

naturalmente, o acto suscita alguma expectativa, pois enquanto podemos todos adquirir nas lojas da especialidade os adereços e instruções para os tradicionais truques de cartas de jogar na manga do casaco, da pomba na lapela e do coelho na cartola, ou da moeda atrás da orelha, do lenço infinito e colorido ou da corda que se corta ou ata e de cada vez se refaz, já inspiram maior nervoseira os jogos de espelhos, as houdinices e aquilo de serrar a meio a assistente do mágico, tal como o momento de levitação

chegado o dito momento, a glamorosa Bárbara Guimarães puxa a cadeira que servia de almofada ao suposto levitante, que acto continuo desabou de cabeça no chão, com estrondo e alguma apreensão para a parte do público que se preocupou com a integridade física do participante

de resto, alguma estupefacção e desalento entre o restante público, o júri e a apresentadora, mas não do artista, que se ergueu quando pôde e logo gesticulou em comemoração de vitória, aumentando a perplexidade da assistência

mas o ridículo não se ficou pelo desastrado número nem pelo enxovalho a que o jovem aceitou submeter-se e de pronto a apresentadora se dirigiu ao concorrente humilhado mas estranhamente em júbilo e perguntou-lhe: diga lá, alguma vez tinha levitado?

bem, a pergunta deixa qualquer racional a levitar: então ela dispôs-se a puxar a cadeira de sustentação da cabeça do rapaz, desamparando-o, sem antes ter feito essa pergunta e sem ter ensaiado previamente?

e se o miúdo tivesse partido a cabeça ou lhe acontecesse algo de grave em sequência do temerário puxão da cadeira?

é que uma coisa é vender humilhações a retalho, por atacado e sem escrúpulos nem ética, como acontece com o uso e abuso televisivo deste género de programas, recorrendo a estratégias vexatórias e patéticas para ganhar minutos de audiência a qualquer custo, geralmente a baixo custo, mesmo perante verdadeiras pérolas que se encontram em muitos candidatos e na genuinidade das suas legítimas ilusões, como o do emocionante exemplo em título

outra bem diferente é atentar contra a saúde e a vida alheias!!

neste caso, uma Barbaridade!!!



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2011-02-25

água



a Assembleia da República aprovou uma Lei - a do OE2011, proposta pelo Governo - onde se inclui uma alteração de deixar os cabelos em pé: os créditos dos serviços municipalizados por atraso no pagamento do fornecimento de água passam a execuções fiscais!


jametinhamdito que em vez de consumidores, há "executados" e "penhorados"!!


além do mau aspecto de se receber um aviso de penhora por atraso no pagamento da conta da água, o problema é que as custas das execuções fiscais são uma fortuna, em valor acima do custo da água e respectivas alcavalas!!!


já o Estado nada paga ao consumidor quando se atrasa...


provavelmente esta enormidade será corrigida e os prejuízos causados pelos deputados aos consumidores, aos serviços públicos e ao País serão minimizados - oxalá - e certamente nunca serão contabilizados e nunca ninguém será responsabilizado por tamanha entropia e pelos transtornos causados à vida das pessoas


mas vai sendo mais flagrante a urgência de se reduzir em número substancial os 230 empregos de deputado, para evitar a proliferação de tão irracionais e atabalhoadas Leis


e se é para meter tanta água, mais urgente ainda: os deputados deviam passar a beber água da torneira




livra ;_)))







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2011-02-23

xeque árabe


jámetinhamdito que a Europa, vergonhosamente, se apressa agora a descobrir a inaceitável corrupção de Ben Ali, Mubarak ou Kadhafi, tendo antes feito interesseira vista grossa à notória falta de democracia e negócios sujos na Tunísia, no Egipto e na Líbia...

é bem verdade!

em alguns casos de ditaduras impiedosas prolongadas, até pode ter havido sanções ou embargos, por sinal amplamente criticados, mas geralmente contra países sem grandes recursos!!

só que importa lembrar que a culpa não pode ser só da comunidade internacional, dos parceiros ou de países terceiros!!!

a principal responsabilidade continua a ser dos ditos ditadores sanguinários que se eternizaram abusivamente no poder; a seguir, de quem os apoia internamente; e depois, infelizmente, de gerações sucessivas do povo que pactuou e pactua com tais senhores, até um dia a juventude acordar desesperada e tentar mudar, com o preço da própria vida e de muitas outras vidas inocentes, assim a situação desavergonhada se disponha a matar manifestantes pacíficos e desarmados em vez do tradicional encarceramento e discreta eliminação!!!

mas atenção: não é só a tenda do Kadhafi que está a estrebuchar em xeque, despeitada e impiedosa, muitos palácios por este mundo fora estão certamente a reforçar a repressão, a trancar portas e a exportar fortunas, colocando familiares a salvo no estrangeiro, pois se em Lisboa, Gdansk e Timisoara foi possível restabelecer liberdade, esperança e democracia, longe mas muito longe disso ficaram Tiananmen, Minsk, Teerão, Cabinda, Moldávia e Birmânia, só para dar alguns exemplos à flor da pena e esquecendo - até quando? - Luanda, Havana e Caracas

oxalá a juventude seja capaz de encontrar formas harmoniosas de superação da culpa de tantas décadas de conivência das gerações antecedentes e seja capaz de expulsar os esbirros sem os substituir por outros da mesma estirpe ou porventura menos civilizados

sim, que ainda a procissão vai no adro... e se muitos Países europeus temem agora a migração massiva dos ... situacionistas, colaboracionistas e outros oportunistas expulsos pelas revoltas populares árabes, a menos que sejam portadores de estupendo cheque árabe, certo é que mais à contraluz se realça a necessidade de uma política de acolhimento de migrantes continente africano, de modo a assegurar um reequilíbrio harmonioso Norte / Sul, económico, demográfico e cultural

;_)))



ps - nem por acaso, a secção "oil & energy" da Reuters acaba de despachar uma curiosa partilha de preocupação sobre a reacção líbia à revolta popular contra 42 anos de tirania, assimilando a vizinha e eterna euro-candidata Turquia aos mais ousados Estados europeus que já se manifestaram - Portugal, entre outros países, parece estar a salvaguardar a integridade e o regresso dos seus nacionais, antes de maiores declarações, estando ainda muito presente a célebre visita de Kadhafi e as vicissitudes da sua bela tenda beduína (entretanto oferecida ao amigalhaço Chavez, que pretendia dar-lhe uso nas cheias de Dezembro passado em Caracas) em que assentou arraiais e recebeu a nata portuguesa em 2007, no Forte de São Julião da Barra, bem como as 4 (!) visitas de Estado feitas por Sócrates nos últimos anos, a mais recente em Setembro passado, para uma reunião de 20 minutos entre 10 países ribeirinhos do Mediterrâneo e uma noitada de comemorações da revolução líbia, incluindo a especial distinção de ir para a festa no carro do próprio Kadhafi, tudo sob a justificação dos 35 mil milhões de euros em negócios entre Portugal e a Líbia, destacando-se o petróleo para a Galp, a construção civil e... numa prova de isenção das confissões, o Banco Espírito Santo...


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2011-02-21

Todos para a rua!!!!


jametinhamdito que circula com insistência mensagem a convocar 1 milhão de pessoas para a Avenida da Liberdade pela demissão de toda a classe política !?

agora até já tem data marcada mas o estilo é de aproveitamento da bolha dos movimentos contestatários contra as ditaduras de décadas da Pérsia e da Arábia

na substância não haverá grandes afinidades quanto à razão de ser das revoltas populares da Tunísia, do Egipto e de outros países com ditadores e nepotismos instalados há muito, com sistemas de controlo social e censura, sem eleições, comunicações nem partidos políticos livres, sem direitos de livre reunião, sem a generalidade de direitos de liberdade de circulação, reunião, expressão, crítica e contestação que vigora em Portugal

então quais são as razões invocadas? a julgar pela primeira e pela última, além de pura e simplesmente demagógicas, são de um nível patético de preconceito e desinformação, de todo o modo com manifesta inversão de sentido da relevância e das prioridades

«1. Reduzir as mordomias (gabinetes, secretárias, adjuntos, assessores, suportes burocráticos respectivos, carros, motoristas, etc.) dos três Presidentes da República retirados;

30. Pôr os Bancos a pagar impostos.»

outras, entre as 30 articuladas, pertencem à esfera do senso comum

«14. Controlar o pessoal da Função Pública (todos os funcionários pagos por nós) que nunca está no local de trabalho. Então em Lisboa é o regabofe total. HÁ QUADROS (directores gerais e outros) QUE, EM VEZ DE ESTAREM NO SERVIÇO PÚBLICO, PASSAM O TEMPO NOS SEUS ESCRITÓRIOS DE ADVOGADOS A CUIDAR DOS SEUS INTERESSES....;

15. Acabar com as administrações numerosíssimas de hospitais públicos que servem para garantir tachos aos apaniguados do poder - há hospitais de província com mais administradores que pessoal administrativo. Só o de PENAFIEL TEM SETE ADMINISTRADORES PRINCIPESCAMENTE PAGOS... pertencentes ás oligarquias locais do partido no poder...

16. Acabar com os milhares de pareceres jurídicos, caríssimos, pagos sempre aos mesmos escritórios que têm canais de comunicação fáceis com o Governo, no âmbito de um tráfico de influências que há que criminalizar, autuar, julgar e condenar;»

mas são razões de sempre, dificultando a atribuição de alguma credibilidade a tão ambiciosa iniciativa: 1 milhão de pessoas na Av. da Liberdade, para controlar funcionários absentistas e encomendas duvidosas?

parece demasiado forçado, tanto mais que se cola ao início do novo mandato presidencial e à catadupa de moções de censura...

haverá conjugação?

ou será mero trolaró?

enfim, certamente nesse dia haverá algo mais útil para fazer!

;_)))






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2011-02-15

das arábias



eis o caro preço da liberdade: chegou a hora de reivindicar

egípcios e tunisinos são povos realizadores mas a tentação de desatar a reclamar é grande

começou no Irão, alastrou a regiões árabes, em busca de liberdade contra décadas de ditaduras, e está de volta ao Irão, cujos ditadores se apressaram a clamar vitória em revolução alheia e vão reprimindo a revolta intramuros

em alguns casos, a ditadura foi decapitada, mas ainda não se sabe se resiste, persiste ou desiste, com exércitos e ex-governantes ainda instalados

certo é que sem um ditador o povo já começa a poder reclamar de si próprio, embora seja difícil lidar com a culpa de anos de consentimento ou contemporização

oxalá os povos árabes saibam dar boa resposta às suas legítimas aspirações, sem deslizar para outras formas de usurpação do poder e sem cair na ratoeira de Lampedusa, mudando apenas o ditador para tudo o mais ficar na mesma





















nota: crédito ao cartunista Bennett e ao tenessiano Chattanooga Times Free Press, bem como à gentileza de JMC-O


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2011-02-11

modo pausa


a descoberta de uma pessoa falecida há anos num apartamento vendido em execução fiscal deve merecer alguma reflexão

primeiro pela constatação de uma vida só, sem ajuda, abandonada ao esquecimento

situação que se repete extensivamente nas nossas sociedades, com muito isolamento e alheamento, em especial na população sénior

como foi possível chegar a este ponto?

alerta!

o perigo é real, pode e vai repetir-se e voltar a acontecer (como já aconteceu) nova tragédia próximo de todos nós

neste caso, ou melhor, em casos destes, é ainda mais difícil, inútil e inconsequente deitar as culpas em Sócrates e Cavaco, no Governo ou no Estado, no sistema ou na globalização

a culpa é nossa, de todos nós, caminhando para o vazio, por vezes depressa ou mesmo depressa demais, para lado nenhum

claro que existe a segurança social, as igrejas, o voluntariado - mas todos esses meios deverão ser complementares a formas de organização mais elementares de solidariedade, em que os seres humanos estabelecem laços, de pertença a famílias, a vizinhança, a comunidades

porque andarmos todos a circular de carro em avenidas cheias não faz de nós uma comunidade

morarmos muitos no mesmo prédio não faz de nós vizinhos

ter um apelido comum não nos torna familiares

os laços verdadeiros são os que nós construímos ao ver e querer saber uns dos outros, os que resultam de mútuo conhecimento e reconhecimento, da convivência e partilha, das decisões comuns, da entreajuda, da diversificação da nossa esfera de relacionamentos e do seu fortalecimento e vitalidade

a chama acesa, afinal, para além do umbigo

em vez de apagada e ensimesmada

dá que pensar...




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2011-02-06

2011-02-04

Ode Triunfal


Álvaro de Campos

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical --
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força --
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés -- oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos da estatura do Momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos pianos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de l'Opera que entram
Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-la-hó la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vadios; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocotes;
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer,
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes --
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraitre amarelos com uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes --
Na minha mente turbulenta e incandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamento, políticas, relatores de orçamentos;
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta.)

Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o amor antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hó jóquei que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,
E ser levantado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos -- e eu acho isto belo e amo-o! --
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosa gente humana que vive como os cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje. . . )

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!
Eia eletricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia, eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!

Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-lá! He-hô Ho-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)



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