2012-03-27

DO 25 DE ABRIL À TROIKA



Por Fernando Cardoso de Sousa
Ten-Cor de Infª na Reforma

Parte I – O 25 de Abril e os ideais

Foi uma longa espera no Terreiro do Paço. Espera que viesse uma ordem para avançarmos e prendermos os membros do governo que víamos espreitar-nos das janelas. Não percebíamos porque é que as ordens não vinham, quando tudo nos parecia tão fácil dali. Mas cumprimos bem e ninguém resolveu agir por conta própria.
Finalmente vieram as ordens para avançarmos e, é claro, já lá não estava ninguém, ou só restavam alguns coronéis, chefes de gabinete ou investidos de outras funções, que resolveram não fugir. E fizeram bem, pois também nada lhes aconteceu, já que ninguém nos tinha mandado prendê-los; até conversaram calmamente com alguns oficiais sobre a justeza do golpe. Mas a missão ainda era (pensávamos nós) capturar membros do governo e assim fomos andando pelos corredores do palácio esperando encontrar algum retardatário. Mas eis senão quando uma porta enorme nos barrou o caminho e, se bem que todos procurassem a chave, ela teimava em não aparecer. Era lógico que os fugitivos tinham fechado a porta à chave, para dificultar a perseguição. Que fazer então? Aparentemente só havia uma solução: arrombar a porta de qualquer forma pois, por muito resistente que fosse, não conseguiria deter militares aguerridos e determinados. Só que…quem é que arromba? Uns não queriam a violência, outros hesitavam em tomar a iniciativa mas todos, de um modo geral, achávamos mal danificar uma porta tão bonita e valiosa, ainda por cima fazendo parte da Fazenda Nacional…e não se arrombou. Ainda procurámos alternativas mas, como não encontrámos, voltámos por onde tínhamos entrado e fomos embora.
Do Terreiro do Paço, um grupo seguiu para a António Maria Cardoso – quartel da PIDE e outro para a Penha de França – quartel da Legião Portuguesa. Eu segui no da Legião e, à medida que nos íamos aproximando, os soldados tomavam posição em prédios contíguos à fortaleza, prontos a ripostar ao primeiro sinal de resistência. E o grosso da coluna lá seguia, imbuída do espirito de missão mais revolucionário e aguerrido.
E esse espírito era necessário, pois começámos a vislumbrar legionários armados, que nos espreitavam do cimo das muralhas. Só que, em vez de tomarem posições defensivas e camufladas, limitavam-se a passear a descoberto e a olhar para nós com curiosidade. Ainda por cima com as armas em bandoleira, daquelas Mauser da I Guerra, em contraste flagrante com o armamento pesado e moderno (para português, claro), que se passeava debaixo dos seus olhos. Era demais!
E chegámos ao portão de entrada que, apesar do adiantado da hora, se encontrava teimosamente fechado. Num ápice as Chaimites tomaram posição, apontando as peças, no que foram seguidas pelo pessoal que, devidamente entrincheirado, visava a porta auxiliar, que fazia parte do imenso portão de ferro. E, quando esperávamos que algumas granadas desfizessem o portão em pedaços, o chefe da força, major Jaime Neves…tocou à campainha. E, nada…
Tocou novamente e, passado um tempo considerável, apareceu alguém à civil que…perguntou o que queríamos. E com uma paciência de Jó, o major lá explicou que se tratava de uma revolução (de que talvez já tivessem ouvido falar) e que estávamos ali para tomar conta do quartel, pelo que deveriam render-se rapidamente, para evitar derramamento de sangue. E a figura fez que tinha percebido, retirou-se e…fechou a porta de novo. E só muito depois lá apareceu o comandante – general Pimenta de Castro – e sua comitiva, a declarar a rendição. Ato contínuo, a tal figura à civil – um coronel reformado – em jeito de encenação e à falta de uma espada, saca da pistola, retira o carregador e deposita o conjunto no chão, em sinal de rendição. Todos respirámos de alívio mas, quando nos preparávamos para entrar calmamente no quartel, o tal coronel reformado, tem um vipe (inspiração momentânea), volta atrás, apanha a pistola do chão, introduz o carregador, arma a pistola e, barrando a entrada no portão, exclama: - “Não me renderei! Só por cima do meu cadáver!”. E ali estávamos nós com 300 armas e 10 canhões apontados aquela figura rocambolesca, sem saber o que fazer. E, mais uma vez, com muita paciência, o major lá explicou ao coronel o ridículo da situação, que voltou a colocar a pistola no chão e entrou à nossa frente.
E, daí a pouco tempo, já confraternizávamos alegremente com o ‘inimigo’, comendo presuntos e chouriços, bem regados com bom vinho, atividade que, pelos vistos, constituía ocupação principal dos legionários.
Ao fim da tarde, apareceu uma força militar toda fresquinha (já não dormíamos há quase 48 horas), com ar muito operacional e determinado, com ordens para nos substituir, começando de imediato a sua ocupação principal que foi “sacar” tudo o que pudesse ter valor. Aí comecei a aprender que a revolução, afinal, pertencia aos que “vinham depois” e achei que seria melhor sair definitivamente de cena e recolher-me a quartéis. E da intenção passei à ação quando, uns dias depois, numa daquelas operações de busca por denúncia de existência de armas escondidas (inexistentes, claro), no interior do Castelo de S. Jorge, vi um furriel sair de um compartimento com o ar mais feliz e alienado deste mundo, pois tinha conseguido roubar um cabide de arame, daqueles que costumamos deitar para o lixo, quando vamos buscar a roupa à lavandaria. Era realmente a altura me ir embora, pois a revolução, para mim, tinha acabado e pertencia agora aos que “vieram depois”.


Parte II – O tempo da “troika”
De certo modo, é essa ainda a sensação que tenho hoje, quando vejo oportunistas sacarem tudo o que conseguem, sem qualquer consideração pelos outros ou pelo país. É como se os dinheiros e património públicos lhes pertencessem e todas as mordomias se justificassem pelos “sacrifícios” que passam (ou passaram). Tal como no pós-25 de Abril, os medíocres, os impreparados, os apressados e os que, de um modo geral, não estão dispostos (ou não têm capacidade) para vencer na vida a pulso de esforço próprio, tomam conta das ocorrências pela via do partido, ou de outra agremiação de troca de favores, desde que as circunstâncias permitam que o façam com um mínimo de risco para si próprios.
No fundo, isso mesmo aconteceu connosco, quando, depois de sairmos do Terreiro do Paço, encontrámos uma multidão entusiasta, que nos vangloriava como reis. E muitos de nós, simples soldados, pouco habituados a banhos de multidão, convencemo-nos que, afinal, éramos mesmo reis, merecedores de todas as regalias e poder quando, na realidade, pouco tínhamos feito com risco verdadeiro. E tantos foram os que se deixaram inebriar pela luxúria do poder, durante o PREC que se seguiu, até descobrirem que, afinal, não eram reis nem génios mas simples soldados ignorantes.
O 25 de Abril deixou muita coisa, boa e má, mas nenhuma tão execrável como aqueles que “vieram depois” e que ainda ocupam muitos dos lugares deixados vagos pelos do antigo regime e pelos que lutaram para que tudo mudasse.
Se calhar, tem de ser mesmo assim e a única esperança é que o sistema vá aprendendo e nós próprios vamos sendo mais capazes de colocar, nos lugares de poder, os tais génios e reis, que temos, mas que teimamos em não valorizar.
Na verdade, se examinarmos os motivos do colapso de sociedades inteiras, como os Vikings ou os Maias, vemos aí razões ligadas à manutenção dos sistemas de poder instituídos, que impediram que soluções verdadeiramente eficazes pudessem surgir. Não propriamente por destruição intencional dos recursos mas por terem criado um vazio de imaginação inerente à incapacidade do poder em gerar um discurso diferente daquele que o fez poder, mesmo que tal signifique o aniquilamento total, como na Alemanha de Hitler ou na Líbia de Kadhafi.
O que faz falta é agir sobre a nossa capacidade coletiva de tomar a iniciativa de definir e resolver os problemas. A base do iceberg compõe-se da incomensurável letargia de um povo demasiado habituado a ser governado, em vez de governar-se. Assim, o verdadeiro mérito de um governo, deste Governo, não estará tanto em sanear as contas públicas (condição sine qua non, é certo) mas sim em libertar a sociedade civil para construir o futuro do País. E, para isso, é necessário destruir as bases em que se constituiu o poder que nos levou a esta crise.





observações são bem vindas obrigado ;_)))

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