Por Fernando
Cardoso de Sousa
Ten-Cor de Infª na Reforma
Parte I – O 25 de Abril e os ideais
Foi uma longa espera no Terreiro do Paço. Espera que viesse uma ordem
para avançarmos e prendermos os membros do governo que víamos espreitar-nos das
janelas. Não percebíamos porque é que as ordens não vinham, quando tudo nos
parecia tão fácil dali. Mas cumprimos bem e ninguém resolveu agir por conta
própria.
Finalmente vieram as ordens para avançarmos e, é claro, já lá não estava
ninguém, ou só restavam alguns coronéis, chefes de gabinete ou investidos de
outras funções, que resolveram não fugir. E fizeram bem, pois também nada lhes
aconteceu, já que ninguém nos tinha mandado prendê-los; até conversaram
calmamente com alguns oficiais sobre a justeza do golpe. Mas a missão ainda era
(pensávamos nós) capturar membros do governo e assim fomos andando pelos
corredores do palácio esperando encontrar algum retardatário. Mas eis senão
quando uma porta enorme nos barrou o caminho e, se bem que todos procurassem a
chave, ela teimava em não aparecer. Era lógico que os fugitivos tinham fechado
a porta à chave, para dificultar a perseguição. Que fazer então? Aparentemente
só havia uma solução: arrombar a porta de qualquer forma pois, por muito
resistente que fosse, não conseguiria deter militares aguerridos e
determinados. Só que…quem é que arromba? Uns não queriam a violência, outros
hesitavam em tomar a iniciativa mas todos, de um modo geral, achávamos mal
danificar uma porta tão bonita e valiosa, ainda por cima fazendo parte da
Fazenda Nacional…e não se arrombou. Ainda procurámos alternativas mas, como não
encontrámos, voltámos por onde tínhamos entrado e fomos embora.
Do Terreiro do Paço, um grupo seguiu para a António Maria Cardoso –
quartel da PIDE e outro para a Penha de França – quartel da Legião Portuguesa.
Eu segui no da Legião e, à medida que nos íamos aproximando, os soldados
tomavam posição em prédios contíguos à fortaleza, prontos a ripostar ao
primeiro sinal de resistência. E o grosso da coluna lá seguia, imbuída do
espirito de missão mais revolucionário e aguerrido.
E esse espírito era necessário, pois começámos a vislumbrar legionários
armados, que nos espreitavam do cimo das muralhas. Só que, em vez de tomarem
posições defensivas e camufladas, limitavam-se a passear a descoberto e a olhar
para nós com curiosidade. Ainda por cima com as armas em bandoleira, daquelas
Mauser da I Guerra, em contraste flagrante com o armamento pesado e moderno
(para português, claro), que se passeava debaixo dos seus olhos. Era demais!
E chegámos ao portão de entrada que, apesar do adiantado da hora, se
encontrava teimosamente fechado. Num ápice as Chaimites tomaram posição,
apontando as peças, no que foram seguidas pelo pessoal que, devidamente
entrincheirado, visava a porta auxiliar, que fazia parte do imenso portão de
ferro. E, quando esperávamos que algumas granadas desfizessem o portão em
pedaços, o chefe da força, major Jaime Neves…tocou à campainha. E, nada…
Tocou novamente e, passado um tempo considerável, apareceu alguém à civil
que…perguntou o que queríamos. E com uma paciência de Jó, o major lá explicou
que se tratava de uma revolução (de que talvez já tivessem ouvido falar) e que
estávamos ali para tomar conta do quartel, pelo que deveriam render-se rapidamente,
para evitar derramamento de sangue. E a figura fez que tinha percebido,
retirou-se e…fechou a porta de novo. E só muito depois lá apareceu o comandante
– general Pimenta de Castro – e sua comitiva, a declarar a rendição. Ato
contínuo, a tal figura à civil – um coronel reformado – em jeito de encenação e
à falta de uma espada, saca da pistola, retira o carregador e deposita o
conjunto no chão, em sinal de rendição. Todos respirámos de alívio mas, quando
nos preparávamos para entrar calmamente no quartel, o tal coronel reformado,
tem um vipe (inspiração momentânea), volta atrás, apanha a pistola do chão,
introduz o carregador, arma a pistola e, barrando a entrada no portão, exclama:
- “Não me renderei! Só por cima do meu cadáver!”. E ali estávamos nós com 300
armas e 10 canhões apontados aquela figura rocambolesca, sem saber o que fazer.
E, mais uma vez, com muita paciência, o major lá explicou ao coronel o ridículo
da situação, que voltou a colocar a pistola no chão e entrou à nossa frente.
E, daí a pouco tempo, já confraternizávamos alegremente com o ‘inimigo’,
comendo presuntos e chouriços, bem regados com bom vinho, atividade que, pelos
vistos, constituía ocupação principal dos legionários.
Ao fim da tarde, apareceu uma força militar toda fresquinha (já não
dormíamos há quase 48 horas), com ar muito operacional e determinado, com
ordens para nos substituir, começando de imediato a sua ocupação principal que foi
“sacar” tudo o que pudesse ter valor. Aí comecei a aprender que a revolução,
afinal, pertencia aos que “vinham depois” e achei que seria melhor sair
definitivamente de cena e recolher-me a quartéis. E da intenção passei à ação
quando, uns dias depois, numa daquelas operações de busca por denúncia de
existência de armas escondidas (inexistentes, claro), no interior do Castelo de
S. Jorge, vi um furriel sair de um compartimento com o ar mais feliz e alienado
deste mundo, pois tinha conseguido roubar um cabide de arame, daqueles que
costumamos deitar para o lixo, quando vamos buscar a roupa à lavandaria. Era
realmente a altura me ir embora, pois a revolução, para mim, tinha acabado e
pertencia agora aos que “vieram depois”.
Parte II – O tempo da “troika”
De certo modo, é essa ainda a sensação que tenho hoje, quando vejo oportunistas
sacarem tudo o que conseguem, sem qualquer consideração pelos outros ou pelo
país. É como se os dinheiros e património públicos lhes pertencessem e todas as
mordomias se justificassem pelos “sacrifícios” que passam (ou passaram). Tal
como no pós-25 de Abril, os medíocres, os impreparados, os apressados e os que,
de um modo geral, não estão dispostos (ou não têm capacidade) para vencer na
vida a pulso de esforço próprio, tomam conta das ocorrências pela via do
partido, ou de outra agremiação de troca de favores, desde que as
circunstâncias permitam que o façam com um mínimo de risco para si próprios.
No fundo, isso mesmo aconteceu connosco, quando, depois de sairmos do
Terreiro do Paço, encontrámos uma multidão entusiasta, que nos vangloriava como
reis. E muitos de nós, simples soldados, pouco habituados a banhos de multidão,
convencemo-nos que, afinal, éramos mesmo reis, merecedores de todas as regalias
e poder quando, na realidade, pouco tínhamos feito com risco verdadeiro. E
tantos foram os que se deixaram inebriar pela luxúria do poder, durante o PREC
que se seguiu, até descobrirem que, afinal, não eram reis nem génios mas
simples soldados ignorantes.
O 25 de Abril deixou muita coisa, boa e má, mas nenhuma tão execrável
como aqueles que “vieram depois” e que ainda ocupam muitos dos lugares deixados
vagos pelos do antigo regime e pelos que lutaram para que tudo mudasse.
Se calhar, tem de ser mesmo assim e a única esperança é que o sistema vá
aprendendo e nós próprios vamos sendo mais capazes de colocar, nos lugares de
poder, os tais génios e reis, que temos, mas que teimamos em não valorizar.
Na verdade, se
examinarmos os motivos do colapso de sociedades inteiras, como os Vikings ou os
Maias, vemos aí razões ligadas à manutenção dos sistemas de poder instituídos,
que impediram que soluções verdadeiramente eficazes pudessem surgir. Não
propriamente por destruição intencional dos recursos mas por terem criado um
vazio de imaginação inerente à incapacidade do poder em gerar um discurso
diferente daquele que o fez poder, mesmo que tal signifique o aniquilamento
total, como na Alemanha de Hitler ou na Líbia de Kadhafi.
O que faz falta
é agir sobre a nossa capacidade coletiva de tomar a iniciativa de definir e
resolver os problemas. A base do iceberg compõe-se da incomensurável letargia
de um povo demasiado habituado a ser governado, em vez de governar-se. Assim, o
verdadeiro mérito de um governo, deste Governo, não estará tanto em sanear as
contas públicas (condição sine qua non,
é certo) mas sim em libertar a sociedade civil para construir o futuro do País.
E, para isso, é necessário destruir as bases em que se constituiu o poder que
nos levou a esta crise.
observações são bem vindas obrigado ;_)))
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