Sócrates, o grego, professava: conhece-te a ti mesmo!
o que pode não ser fácil - é preciso estudo, atenção permanente, preparação para a surpresa e, difícil mesmo, exige humildade, pois eventualmente não gostaremos de tudo o que formos encontrando em nós próprios...
mas, do alto da sabedoria que o filósofo ensinava, tal era talvez a melhor forma de compreender o mundo, senão mesmo de o encarar
já Cícero, certamente pressentindo que nem sempre somos suficientes para encontrar a resposta em nós, estudou as artes divinatórias, através das quais mulheres e homens, desde que o mundo é mundo, se inquietam pelo futuro e procuram respostas para o caminho a seguir, para entender o sentido, para sentir um rumo - quandam inter homines divinationem, quam Graeci mantikh appellant...
hoje dispomos de tecnologia, sofisticada, laboratorial, para nos domínios do mundo físico e no meio social sabermos onde estamos e para onde vamos
para os grandes temas da vida pública, de ordenamento social, da convivência em comunidade, temos instituições poderosas, sistemas políticos, um aparato de órgãos de poder e de controlo, métodos e leis eleitorais, censos, a comunicação social, a participação directa ou a via representativa, os partidos políticos e movimentos cívicos, as convicções, ideologias e fé, os politólogos e comentadores de toda a espécie travestidos em novos oráculos nos templos sacralizados da televisão, rádio, jornais, internet, os consultores de imagem, os assessores para toda a obra, os palácios, campos de golf ou os restaurantes da moda, enfim, o próprio zé
e armados de semelhante aparato, cremos de 4 em 4 anos (ou de 5 em 5) contribuir para estabelecer o azimute ou mesmo para definir o rumo para o próximo porto seguro do apaziguamento social, da legitimação dos eleitos, da escolha de quem em nosso nome exercerá a nossa soberania, ao menos confiamos que temos um dedo, um gesto, uma cruzinha, na coroação de alguns dos que tornamos poderosos e a quem poderemos exigir e responsabilizar enquanto nossos mandatários
numa primeira fase, compreende-se que nos dediquemos a escolher, de entre o que se nos oferece ou ajudamos a oferecer (quando nos candidatamos ou subscrevemos programas eleitorais) exactamente o que temos como nosso fito pessoal, certos mesmo de que o nosso gosto subjectivo coincide com o interesse geral
ou seja, não olhamos a consequências, partimos para a multidão e somatório das escolhas individuais, armados das nossas certezas e confiantes, em grau variável de segurança, de que o resultado final será um bocadinho menos arriscado do que o alcançado quando todos se atiram ao bolo, cada um rema à sua vez e para seu lado ou quando de tão desfiada à toa a corda perde a fortaleza e se rompe sem apelo nem agravo
um dia chegará algum amadurecimento: convicções pessoais à parte, interessa é convergir para o interesse de todos (que bem pode não ser o de cada um) e, sobretudo, para soluções exequíveis, susceptíveis de serem defendidas por muitos, aceites por ainda mais e toleradas por quase todos, reduzindo a inevitável contestação a um mínimo aceitável - segundo a fé de que o que se consegue por consenso, sem imposição aos derrotados, é susceptível de menor oposição ou de formas menos aguerridas e destrutivas de obstrução
ou seja, o facto de abdicarmos um bocadinho da escolha que nos seria um primeiro impulso tem a contrapartida superior de podermos sentir que participamos na escolha efectiva, entramos no mundo real, em que somos capazes de aderir ao sistema de legitimação, formando compromissos
e de facto não se consegue tomar a Bastilha todos os dias... nem há Bastilhas suficientes para cada um fazer a sua revolução, aliás muitas revoluções só vingam porque arregimentam a arraia miúda, de tão contagiante a causa, o bastante para o sentir comum de um número crescente de cidadãos se agigantar ao poder e o derrubar, regra geral sem saber o que vem a seguir ou mesmo para onde se quer ir, simplesmente era a hora do "basta!"
mas o mundo não se governa com um "basta!" - é preciso semear, planear, colher, construir, edificar a confiança, que demora a conseguir mas demora ainda mais a reconstruir...
até que o amadurecimento cai de maduro e há um dia em que não nos satisfaz o consenso, o compromisso, a maioria
queremos de volta a ideia inicial de expressão dos interesses e gostos ou mesmo caprichos de cada um - até porque, somos levados a pensar, a generalidade dos eleitores tende para aceitar e procurar consensos, agora é a nossa vez de gritar, temos também o direito individual de nos abstrairmos de participar ou mesmo de participar à nossa maneira, como cada um quer, o resultado final pouco importa, afinal o que se pede à democracia é justamente a expressão das decisões de cada um
pelo que voltamos ao ideal: cada um vota de acordo com a sua consciência
e, aliás, com o voto livre, informado e secreto, é mesmo sempre assim
enfim... divagações!
na realidade, por vezes olhamos para os mapas eleitorais e para o exercício do mandato que soberanamente confiámos a quem elegemos como nossos representantes, e somos levados a achar que o efeito conseguido não foi muito melhor do que seria se, em vez da nossa escolha na origem desses resultados e mandatos, outra tivesse sido a forma de os fixar, de decidir, de escolher, em vez da democracia que nos responsabiliza e até chega a angustiar
claro está que nada, nada, nada substitui a democracia e a manifestação popular por via eleitoral, ainda que apenas de tempos a tempos
por exemplo, nas anteriores presidenciais, a escolha dos eleitores foi condicionada por um terceiro candidato, Mário Soares, interposto nos boletins por José Sócrates, quando se mostrava incerta a inclinação da maioria entre Cavaco e Alegre
a decisão foi mesmo a dos eleitores? foi, se aceitarmos que é o somatório dos votos individuais que decide quem é o Presidente eleito
mas é fácil sentir - e houve que, a tempo, o pressentisse e denunciasse - que o desenho do boletim de voto é que decidiu o inquilino de Belém, redistribuindo votos e mesmo convicções, arrasando as hipóteses de um combate igual
pior, hoje sabemos que isso não foi grande coisa, mesmo os eleitores de Cavaco já cofiaram a cabeça em tantos episódios sectários, mal amanhados e até grotescos que podemos legitimamente concluir que afinal não teria sido assim tão mau se nos tivesse sido proporcionado um confronto justo, em igualdade de armas, entre Cavaco e Alegre, sem manipulações para desunir um dos lados, afinal sempre haveria chance de uma alternativa ao que está a acontecer, com o PR que tivemos e teremos (safa...!) que gramar, embarretando não apenas o eleitorado de esquerda mas a totalidade da nação, sendo que o castigo vale por 10 anos, dificilmente será menos :<
outro exemplo, se como resultado de uma eleição - as próximas, as legislativas - nenhuma das formações em que votamos (também é método de mérito discutível, mas certo é que votamos apenas num partido político e não em escolha múltipla nem em coligações preferenciais) tiver a maioria necessária para constituir um governo estável, o partido político mais votado - vencedor? veremos! - decidir coligar-se, sem nova consulta popular e sem que a política de coligações conste de qualquer dos programas eleitorais?
cenário verosímil, senão mesmo o mais plausível ou até muito provável
e obviamente aleatório - como ninguém foi chamado a votar numa coligação - já agora, qual? - pois podemos afirmar que essa solução não foi a escolhida por nenhum dos eleitores, mas outra vez afinal por interpostos dados, marionetas, personagens, que se substituem ao povo soberano na hora da verdadeira decisão
um tal resultado será afinal tão legítimo e tão aleatório (por não pretendido... uma vez que ninguém o escolheu em consciência) como o que se obteria jogando pedrinhas ao ar, búzios, cartas, dados, lendo a bola de cristal, perguntando ao oráculo, olhando o voo dos pássaros, as doze pedras de sal, faca, papel ou tesoura, disputando uma partida desportiva, uma aposta de galos, uma luta campal, as olimpíadas, um corpo a corpo entre atléticos líderes, consultando as profetizas, ouvindo os deuses, o simples acaso, qualquer sorte - tudo é melhor e menos injusto que a mera lei do mais forte
há dias, foi ventilada uma possível coligação do PPD/PSD com o Bloco de Esquerda
qualquer destes partidos políticos abrange um leque enorme de sensibilidades, correntes, facções, num convívio (nem sempre pacífico) entre ideologias muito diferentes e, sobretudo, entre personalidades que não hesitariam em esquecer todas as diferenças ideológicas ou mesmo as próprias ideologias para ... exercer o poder, pior, para o tomar
mas dir-se-ia que estes dois partidos constituem mundos sem intersecção, pelo que quase somam o País, desde as alas mais conservadoras do PPD/PSD, às mais liberais ou às mais social-democratas (estatuto que o partido nunca atingiu, e percebe-se bem porquê) e às mais reformistas, até aos socialismos mais ou menos moderados do Bloco de Esquerda e por aí adiante de trotsquistas, comunistas revolucionários, leninistas e sabe-se lá que mais, enfim, todo o resquício de PSR (ainda existe? onde foi publicada a extinção? o líder continua a ser Francisco Louçã, que assim dirige dois partidos políticos?), UDP e vários outros partidos que antigamente enchiam de siglas os extensos boletins eleitorais - ao menos para a purga de símbolos ininteligíveis terá serventia o BE, além, é claro, de dividir os votos à esquerda na tentativa de Sísifo de oferecer o poder à direita
a propósito de o BE servir apenas para dar o poder à direita, jametinhamdito que só a equação, como resultante das eleições, de uma coligação PPD/PSD com o Bloco é a prova provada da teoria da aleatoriedade dos resultados do voto popular
só é pena ser tão perigoso para a governabilidade do País
mas para quem quiser tentar, é só votar conforme bem calhar
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ps - votem bem (apesar da tira do Quino suscitar alguma perplexidade a acrescer à nossa reflexão)
observações são bem vindas
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