2009-04-09

Veneza

«O comboio tinha atravessado a estação de Mestre, atravessara, diante de S. Julião e de Fusina, a campina luminosa e húmida - e enfiava agora, num silvo estridente, pela grande ponte de Marghera. dum lado e do outro, a laguna e o céu confundiam-se no mesmo revérbero rosa e verde dum poente de Julho. Um colar de luzes tremulava, ao fundo. E desse colar de oiri uma sombra de mármore e opala emergia, ondulante, quase suspensa, como uma incomparável flor branca mergulhando no mistério da água a sua ténue haste de fogo.
Sofia correu dum lado ao outro do compartimento e, estendendo fora da janela a cabela loira, gritou, batendo as mãos, numa expressão quase infantil de alegria:
_ Veneza! É Veneza!...
E era, na verdade, na sua concha luminosa, o crepúsculo de Veneza que surgia.»

in VENEZA (figura invisível e «Ville d'inquietude» - Maurice Barrés) uma das três novelas de "O Amor e o Tempo", de Augusto de Castro, 2ª edição, 1955, edição da Empresa Nacional de Publicidade - o Autor dedica a Beltran Masses, o grande pintor de Veneza nascido em Espanha, esta inspiração, voluptuosa da Cidade dos olhos irresistíveis.

PS - nesta obra, para início de conversa:

«O Amor e o Tempo encontraram-se, num doirado dia, quando a Primavera eterna floria as olaias e os prados, numa estrada erma, à beira de um vale em que cantavam as fontes e os ninhos.
e o Tempo disse ao Amor:
_Amor, porque me foges sempre, como a sombra foge da luz? desde que o mundo é mundo, eu te procuro e te sigo e só te encontro para te ver fugir-me, só te alcanço para te perder! Amor, dir-se-ia que tens medo de mim!
E o Amor disse ao Tempo:
_ Tempo, porque me persegues, destruindo atrás de mim todas as flores que eu colho e todas as ilusões que eu semeio? Porque és a minha sombra e, fingindo seguir-me, o meu algoz? És tu quem apaga os desejos que eu crio, és tu quem sufoca a Beleza que eu sonho! Tempo, eu seria imortal sem ti. És tu quem gera as dores sobre o meu caminho. Por isso te fujo, desde que o mundo é mundo!
E o Tempo respondeu ao Amor:
_ Se eu destruo as flores que tu colhes e as ilusões que tu, Amor, semeias, o que seria dos homens se eu não seguisse na vida os teus passos ligeiros e ardentes? Se eu apago os desejos que tu espalhas, também cicatrizo as dores que tu crias!
_ Que importa isso, Tempo? Os homens bem sabem que o meu verdadeiro nome é dor e nem por isso me amam menos _ retorquiu o Amor.
_ É certo que se te chamas a Dor, eu sou o teu melhor aliado _ replicou o Tempo. se não fosse eu, quem ensinaria os homens que amam e sofrem a esquecer?»



observações são bem vindas
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4 comentários:

Sol no Coração disse...

Olá,
venho agradecer e retribuir a visita!;0)Interessante o teu espaço!
Desejos de Feliz Páscoa!
Deixo um sorriso e um raio de sol.
Lia

Anónimo disse...

É curioso, António, que tenha ido buscar o Augusto de Castro para nos trazer um eco de Veneza e, a par disso, O Amor e o Tempo. O Augusto de Castro (sempre Dr.) é alguém de quem me lembro bastante bem. Os seus editoriais no Diário de Notícias, jornal de que ele foi durante muitos anos o director, eram muitas vezes só comparáveis às palestras radiofónicas do Ramiro Valadão na Maçadora Nacional. (Este era o célebre "Dr. Ra", nome que lhe era dado jocosamente pelo facto de o tempo que medeava entre o anúncio da sua palestra e o nosso desligar do rádio ainda dar para apanhar esse bocadinho do nome.)
O Augusto de Castro até escrevia bem, no estilo então considerado modelar. "O Amor e o Tempo", de 1929, foi escrito antes da segunda (longuíssima) passagem do Augusto de Castro pelo DN, onde se revelou um salazarista de peso. O texto é uma reflexão metafórica com algum interesse, quanto mais não seja pelo estilo.
jmco

Sofá Amarelo disse...

Amor e Tempo andam sempre de braço dado, porque o Tempo nunca é o bastante para o Amor! Os verdadeiros amantes deveriam ter dias de 48 horas!

Abraços!!!

argumentonio disse...

1 - pois fica o Ditos isso tudo sobre o Augusto de Castro e ainda algo mais, com o agradecimento devido!

2 - o acaso da obra decorreu de inesperada visita ao alfarrabista em simultâneo com notícias que chegavam (melhor, estavam para chegar e estavam para ir) de Veneza e algo mais, com o ensejo devido!!

3 - 48 horas de dia, outras tantas à noite e, já agora, algo mais, com o atrevimento devido!!!

muito obrigado ;->>>