O estudo de línguas pode ser apaixonante.
É frequente que algumas palavras contenham em si muito de história acumulada ao longo de séculos durante períodos de invasão de diferentes povos. Como geralmente o povo invasor encontra uma população a viver num determinado território, existe um choque natural entre a língua falada pelo invasor e a que é usada pelo povo invadido. Se os invasores possuem uma língua que se adapta relativamente bem ao idioma falado no território conquistado, a leitura dos muitos topónimos já existentes, para dar apenas um exemplo, faz-se de maneira relativamente fácil. Se não, a variação pode ser enorme. Quando os descendentes de vikings, naquela altura franco-normandos, invadiram a Grã-Bretanha e derrotaram o rei anglo-saxão em 1066, eles acabaram por alisar o caminho para, gradualmente, fazer com que o saxónico inglês se tornasse uma língua com muito mais elementos latinos do que o alemão, por exemplo, e pudesse hoje em dia tornar-se a grande língua franca do mundo.
É frequente que algumas palavras contenham em si muito de história acumulada ao longo de séculos durante períodos de invasão de diferentes povos. Como geralmente o povo invasor encontra uma população a viver num determinado território, existe um choque natural entre a língua falada pelo invasor e a que é usada pelo povo invadido. Se os invasores possuem uma língua que se adapta relativamente bem ao idioma falado no território conquistado, a leitura dos muitos topónimos já existentes, para dar apenas um exemplo, faz-se de maneira relativamente fácil. Se não, a variação pode ser enorme. Quando os descendentes de vikings, naquela altura franco-normandos, invadiram a Grã-Bretanha e derrotaram o rei anglo-saxão em 1066, eles acabaram por alisar o caminho para, gradualmente, fazer com que o saxónico inglês se tornasse uma língua com muito mais elementos latinos do que o alemão, por exemplo, e pudesse hoje em dia tornar-se a grande língua franca do mundo.
Por vezes, mesmo dentro daquele que é hoje o mesmo país dos
tempos antigos, os invasores viram a sua língua foneticamente alterada pelo
substrato linguístico que encontraram na região conquistada. Um mero exemplo da
invasão muçulmana da Península Ibérica já há muitos séculos pode ilustrar bem o
que pretendo dizer. A palavra árabe oued,
que basicamente significa “rio” ou “arroio”, foi convertida no lado atlântico
do território português em “ode”, enquanto na parte leste do nosso território e
em todo o sul de Espanha foi transformada em «guad». As línguas, no seu entrechoque,
funcionam um pouco como a combinação de cores: se pintarmos amarelo sobre azul
fresco ficaremos com verde. Múltiplas outras combinações são possíveis. Do
exemplo acima, ainda hoje temos na costa atlântica topónimos de terras e rios
substancialmente diferentes: Odemira (rio Mira), Odeceixe, Odeáxere, Odivelas,
etc. na parte ocidental do nosso território, e Guadiana, Guadalquivir (rio
Grande), Guadalupe, etc. na parte leste de Portugal e no sul de Espanha.
Se oued se
transformou em ode numa parte do território onde o povo tinha uma forma de
falar diferente da outra em que a transformação foi para guad, pode imaginar-se já que determinados outros sons sofreram
igualmente alterações de monta.
Quando os romanos invadiram a Península Ibérica e acabaram
por dominá-la, embora nuns sítios mais do que noutros, houve muitos sons do
latim falado então que foram convertidos noutros, pelas razões já apontadas.
Esses sons alteravam-se principalmente em palavras usadas quotidianamente, ou
seja, na linguagem popular, e tendiam a manter-se nas palavras mais eruditas,
com uma frequência de uso muito mais baixa. Assim é que, para dar apenas dois
ou três exemplos, os grupos consonânticos «pl» e «fl» se converteram muitas
vezes em «ch», como se vê em pluvia e
plumbum que passaram, respectivamente
a “chuva” e “chumbo”, enquanto flavius
e flama se transformaram em “Chaves” e “chama”.
Por outro lado a queda de sons intervocálicos, nomeadamente
do «l», do «n» e, mais raramente, do «d» nas palavras de origem latina é uma das
principais características do galaico-português. Neste aspecto, a língua falada
em Portugal e na Galiza distingue-se substancialmente do castelhano, onde essa
mesma queda não se registou devido ao facto de os falantes não serem os mesmos
e não reunirem as mesmas características linguísticas, já que possuíam um
substracto diferente.
Este é
um fenómeno que torna mais difícil para os castelhanos o entendimento de muitas
palavras portuguesas, não sendo o inverso verdadeiro pela simples razão de que
muitas das palavras que, na sua forma popular, perderam ou o «l», o «n», ou
mesmo o «d», mantiveram esses sons na sua forma erudita, menos usada no
dia-a-dia e, portanto, menos sujeita a erosão pelo seu uso constante. Os
exemplos são muitos, pelo que me limitarei a dar dois para cada um dos
casos:
- Dolor, em castelhano, é apenas dor em português (o «l» entre duas vogais caiu naturalmente nas palavras de uso frequente, embora se tenha mantido nos vocábulos mais eruditos, como doloroso.
- Color em castelhano converteu-se em cor no galaico-português. Contudo, entendemos color muito bem porque dizemos colorir, coloração, etc.
Com o «n» passa-se o mesmo. A luna castelhana passou a lua em português, mas em formas mais
eruditas mantemos o «n», como em lunar, lunático, etc.
Conimbriga passou a Coimbra igualmente pela queda do «n»,
mas um habitante de Coimbra é um conimbricense, i.e., o «n» mantém-se na
palavra erudita.
Apesar de menos frequente, com o «d» ocorre o mesmo fenómeno
em várias palavras. É o que nos faz dizer fiel, enquanto os castelhanos dizem fidel. Na forma erudita, porém, dizemos
fidelíssimo.
Igualmente em sede (de bispado, por exemplo), o «d» caiu e
originou a palavra Sé. Mas dizemos sedear.
Através destes exemplos já podemos ver que quando um espanhol nos fala
de la dolor de las personas, não
temos qualquer dificuldade em entendê-lo. No entanto, em português os «ll» e o «n»
caíram, pelo que dizemos "a dor das pessoas". Será que um espanhol
nos entende com a mesma facilidade?
Ilustrado com alguns exemplos o caso da existência de
diferenças linguísticas, lembremos que há determinados sons existentes numa
língua que não existem noutras. O nosso português, por exemplo, não tem o som «th»
(there, their), que é tão frequente
no inglês. Felizmente, isso não constitui grande problema para a maioria dos
portugueses.
Já o mesmo não se pode dizer dos chineses a falarem
português. Como a sua língua não possui o som «r» do nosso “rato” ou “carro”,
eles substituem-no pelo que acham mais próximo, mas que mesmo assim fica algo
longe. Daí que encontremos muitos chineses a dizerem «lalanja» em vez de
“laranja”, e se tenha banalizado entre as pessoas mais velhas o clássico pregão
dos chineses que vendiam gravatas na rua: Glavata
balata! Entretanto, note-se que os chineses bilingues nascidos em Portugal
já pronunciam bem o «r», como seria de esperar.
E depois desta longa introdução chegamos finalmente ao caso
que me trouxe a escrever este apontamento: a não existência do som «f» inicial
em numerosas palavras castelhanas. Dou a palavra a Paiva Raposo, um dos
coordenadores de uma gramática da língua portuguesa recentemente publicada pela
Fundação Gulbenkian:
“Num dado período da primeira metade do primeiro milénio, depois da invasão romana da Península Ibérica, um grupo de habitantes do norte da Península, rudes e sem muita instrução, resistiram aos romanos durante muito tempo e não se assimilaram tanto como outros habitantes da Península. Numa dada altura decidiram finalmente aprender latim, possivelmente para poderem comunicar com os colonizadores e outros habitantes da Ibéria que já tinham aprendido a língua. Acontece que a língua materna dessas pessoas – não relacionada com o latim e nem sequer indo-europeia – não possuía o som «f». Ora, quando essa gente começa a falar em latim – certamente um latim macarrónico na época –, vai omitir sistematicamente esse som «f» das palavras latinas que o têm em posição inicial, como ficatum (fígado), ferrum (ferro) e farina (farinha). Era como se em português passássemos a dizer “ígado” em vez de fígado, “herro” em vez de ferro, ou “igo” em vez de figo. Imagine-se os comentários dos falantes educados do latim ao ouvir esses ignorantes. No entanto, foi esse falar rude que veio a originar a língua em que Cervantes escreveu o Dom Quixote. O castelhano é uma das pouquíssimas línguas românicas na qual não se pronuncia o «f» inicial latino, juntamente com o gascão.”
Curioso com o facto, que desconhecia, procurei elaborar uma
pequena listagem de palavras de uso normal em castelhano em que o «f» inicial
do português não existe, sendo graficamente substituído por um «h». Este «h»
não se pronuncia, tanto quanto sei de castelhano, mas assinala a ausência do «f»,
tal como em francês même, bête, tête,
fête, hôpital assinalam a queda de um «s» que anteriormente terá existido
(e que na língua portuguesa se mantém nos correspondentes etimológicos:
“mesmo”, “besta”, “festa”, “testa”, “hospital”,
embora tenha havido uma certa evolução semântica).
Na tabela abaixo,
estão em primeiro lugar, por ordem alfabética, as palavras em português e, na
segunda coluna, em castelhano:
José Manuel Carvalho-Oliveira
nota: este saborosíssimo e agradecido jametinhadito linguístico deve-se a gentil e consolidada parceria entre o Ditos e o Autor do texto, blogger habitual do AZBlog
observações são bem vindas obrigado ;_)))
2 comentários:
E Assim se aprende em bom português.
Obrigada!
Mais uma excelente lição de linguística, a encher o Ditos de orgulho!
Além da posição inicial, por vezes falta o «f» noutro lugar da palavra, como é o caso - com alguma graça - de «tarea», a nossa "tarefa", embora usada amiúde com o sentido de TPC, os tradicionais trabalhos de casa estudantis...
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