2009-10-20

Caim (II)


depois, há que admitir que a polémica seria um tanto serôdia não fosse o interesse comercial de suscitar algumas vendas e "share" na comunicação social, repisando assunto estafado

estafado o assunto das posições antagónicas de Saramago e das religiões do Livro...

porque os temas da Bíblia são de facto fonte inesgotável de análise, pois além de recolha de reflexões valiosíssimas e de registos únicos como só a palavra escrita pode oferecer aos tempos, aos povos e às civilizações das narrativas bíblicas, há nas escrituras matéria bastante para justificar a existência de inúmeras bibliotecas e de um considerável progresso da Humanidade

lembremos que foi com a Bíblia que se iniciou a democratização da leitura e da escrita, com a invenção da imprensa, com a Reforma e a Contra-reforma, globalizando a alfabetização responsável por frutos civilizacionais de que as comunidades humanas se podem orgulhar e que explicam o extraordinário progresso económico, social e humano

desse movimento, frutuoso desde há 3 mil anos, Saramago apenas critica a dogmática e a instrumentalização, sendo a crítica inteiramente legítima e, sobretudo, literariamente muito apelativa, cativante, um prazer

porém, ao contrário de Saramago, há quem acredite que a invenção de deus(es), das religiões e de livros sagrados, enquanto consequência do acesso à fé, ao misticismo e ao poder de abstracção com sentido de busca, de valores e de transcendência, constitui um factor decisivo para a conformação do Homem enquanto espécie, para a extraordinária caminhada do Homem enquanto ser, para o prodígio que é o Homem tal como hoje habita o planeta, adaptando-se a exigentes condições de vida e confrontando-se com inimagináveis desafios da natureza, a começar pela compreensão da sua própria natureza e seguindo pela dignificação do seu papel, por ínfimo e fugaz que seja, na imensidão espacial e temporal do Universo

ou seja, poderá defender-se que a evolução do Homem está associada ao Além, à construção de arquétipos e de um (ou mais) Deus criador, ao respeito pelos mortos, à possibilidade de redenção, à busca espiritual, às manifestações religiosas, às práticas rituais e iniciações, à partilha de aspirações, a estados (alterados, inclusive) de consciência, à procura do conhecimento, ao controlo do poder e das paixões, à fraternidade, ao Amor, assim desde o princípio dos tempos e, desejavelmente, para sempre

e, convém lembrar, no princípio era o Verbo, segundo a Bíblia, e obras como a de Saramago e as reflexões que elas possam merecer, indiciam que o Verbo será ainda por muitos e auspiciosos tempos

oxalá os saibamos aproveitar para olhar em frente, com serenidade, elevação e Amor



observações são bem vindas
;->>>

2 comentários:

mafY disse...

Caim I e II
O que leio aqui é duma sensatez admirável, simples e directa, exactamente como sou capaz de compreender.

Anónimo disse...

Uma primeira ressalva, António: ainda não li "Caim", do J. Saramago. Portanto, não é sobre o conteúdo do livro que me posso pronunciar. Há, porém, uma frase linda dita há dias pelo autor que me mostra aquilo de que mais gosto: liberdade de expressão usada com seriedade. A frase em questão é: "A Bíblia é um manual de maus costumes." A verdade é que muitas das práticas preconizadas na Bíblia – v.g. "olho por olho, dente por dente" – são definitivamente más. Como Gandhi dizia: "Olho por olho, e o mundo acabará cego". Na prática dos dias de hoje, o facto de um (1) soldado israelita se manter cativo dos palestinianos já conduziu a ataques dos israelitas que causaram centenas de mortos e feridos.
Saramargo (chamam-lhe assim por não gostarem do seu sentido de humor – as verdades dele podem parecer muito amargas para quem tem olhos e ouvidos dogmáticos) analisou a Bíblia numa outra obra sua: "O Evangelho segundo Jesus Cristo". Também o seu "Ensaio sobre a Cegueira" nos fala da necessidade de abrirmos os olhos. Suponho que Caim irá na mesma linha. Talvez recorde, com horror, aquela máxima do Ku-Klux-Klan nos Estados Unidos: "Deus castigou Caim, fazendo com que todos os seus descendentes nascessem negros." Re-analisar as coisas, olhá-las com olhos despojados, tão objectivos quanto possível, é o que Saramago tem tentado ao longo de alguns dos seus livros. É uma busca incessante, um legado que nos quer deixar. Está na linha de Bertrand Russell, que foi proibido de leccionar nos Estados Unidos após a publicação do seu ensaio "Porque não sou Cristão" (li-o com 18 ou 19 anos). Há, nestas questões da Igreja Católica, pilares que muita gente não gosta de ver abalados. "As causas da decadência dos povos peninsulares", ensaio escrito e apresentado por Antero de Quental nas famosas Conferências do Casino, está longe de ser uma obra popular. Não convém ao poder estabelecido. Diz, no entanto, muitas verdades. Com Saramago passa-se muito do mesmo: os católicos fazem-lhe barreira. Quase se pede excomunhão para ele por escrever livros assim. Lembremos a fita que um Secretário de Estado da Cultura português fez a propósito do "Evangelho".
Entretanto, a Bíblia foi dos livros mais censurados. Há determinadas passagens que não interessavam ao poder. Em Espanha, nos longos tempos da Contra-Reforma, possuir um exemplar da Bíblia que não fosse aprovado podia dar pena de morte. Em Portugal, inspectores de bons costumes entravam nos barcos estrangeiros que ancoravam ao largo de Lisboa para verificar se havia neles livros tão perigosos como a Bíblia em inglês. Pouco se sabe destes casos, que o nosso sistema educacional não refere. O que, por exemplo, as reportagens da TV mostram é que existe um grande número de pessoas que não leram a Bíblia. Pudera! A versão aprovada do Novo Testamento, revista pelo Padre Matos Soares, ainda passava, mas o resto era veneno.
Quando um porta-voz da Conferência Episcopal nos vem dizer que Saramago é ignorante das coisas bíblicas, ele não menciona um só exemplo dessa ignorância. Faz o habitual: ataca o homem através da adjectivação. Apoda o escritor de ignorante. Ad hominem. É assim que faz o poder quando não tem argumentos. Refugia-se no dogma, nos pilares velhos de séculos. Lembra o Salazar que dizia "O Ultramar não se discute. Cumpre-se."
Uma das frases dos tempos medievos que mais aprecio diz: "Amicus Plato, sed magis amica veritas", o que, traduzido, diz mais ou menos o seguinte: "O Platão é amigo, mas a verdade é ainda mais amiga." Refugiar-se apenas na tradição e em autoridades como Platão não conduz a lado nenhum. Se tivesse sido assim, muitos dos avanços da ciência não teriam existido. É por estas e por outras que não admira que no Portugal do século XVIII ainda se ensinasse nas universidades de Coimbra e de Évora, ambas controladas pela Igreja, que era o sol que girava em volta da Terra…
jmco