2007-03-15

gloriosas degenerações

talvez já ninguém ligue aos apetitosos almoços, digo, aos escritos do Prof. João César das Neves ou pelo menos, no zapping pelos jornais, não se deu conta de qualquer reacção ou comentário à excelsa crónica de 5 de Março, no Diário de Notícias, aliás com o brilhantismo a que já habituou os leitores

reza, nessa crónica, João César das Neves, que as nossas últimas cinco gerações foram bem catitas para a história de Portugal, pelos excelentes contributos transformadores que nos permitiram passar da luz a petróleo (embora haja quem, apesar de ter menos de um século de existência, ainda se lembre da candeia de azeite, da vela de estearina e do pivete do querozene) à internet (um feito português!) e da caleche ao telemóvel

essas gloriosas gerações assim analisadas atiram-nos de volta ao início do século XX, anos perdidos, porém,: foi a pior das 5, herança trágica da cabeça perdida da instauração da democracia republicana, talvez pela presença de genes nocivos do liberalismo decadente com que tivémos de amargar...

"Ó Portugal, hoje és nevoeiro", ilustra a geração do Fernando, ainda assim um escritor, embora Pessoa lúcida pois percebeu que isto não tinha saída...

vem então a segunda gloriosa, a geração "Salazar", afilhada de um político, portanto - era para botar ordem no regabofe, em nome da "segurança e estabilidade", "qualquer que fosse o preço": aqui terá que se reconhecer coerência ao autor da crónica pois a magra e rija refeição salazarenta não foi nada grátis, pois não foi, e - a la Sérgio Godinho - o coveiro que o diga ...

a degeneração subsequente oferece-nos sucessivamente a "geração Raul Solnado", depois a "geração Herman José" e agora - estava-se mesmo a ver e tinha que ser - é a geração do Gato Fedorento

e assim se nomeou um país, em cem anos de anedotário falgazão apenas entrecortado pelo breve período mais sisudo todos sabemos de quem...

breve, é maneira de dizer, há muito quem afiance que os 48 anos ainda perduram, a poder do nacional concursismo do nosso serviço público televisivo, safa !

e portanto, da caleche à internet e coisa & tal, o almoço a pagar é o branqueamento de uma geração a bem dizer tão gloriosa como as outras

esquecidos e por dizer, como convém à economia e aos objectivos em que a crónica se insere, ficam aqueles aspectozinhos da PIDE, dos assassinatos impunes, da tortura, do degredo, da prisão sem culpa formada nem direito a advogado, juíz ou defesa, da guerra do ultramar, da discriminação contra as mulheres, do analfabetismo generalizado, do condicionamento económico, do colonialismo, da censura, das eleições fraudulentas, da ausência de eleições, do partido único, dos portugueses de primeira, de segunda e de terceira, do isolamento internacional, do atraso do país, da miséria, da subalimentação, da emigração massiva, do caciquismo...

por muito bem disfarçado e mesmo que quase ninguém repare, jametinhasdito, ó Prof. João César das Neves

isto merece um museu




observacões são bem vindas

1 comentário:

Anónimo disse...

A maneira de ver factos passados depende muito da pessoa que os recorda. A situação lembra os caramelos e rebuçados que antigamente eram anunciados nos comboios e na rua através do conhecido pregão "Cada cor, seu paladar". Nada de mais natural que JCNeves, salvo erro professor da Católica, esqueça os Tarrafais, a PIDE, os exílios forçados de boas cabeças, as fraudes eleitorais de que eu próprio tive uma vez, inesperadamente, um testemunho directo através de alguém conotado com o regime. A selecção dos factos, a maneira como se lêem esses factos e o tom com que deles se fala, tudo é altamente revelador de como a pessoa que faz o comentário pensa. Esta é uma verdade universal, na qual nós dois estamos evidentemente incluídos.
Pior ainda é quando os historiadores conseguem vislumbrar uma cadeia ininterrupta e lógica de fenómenos que, inevitavelmente, "tinham" que provocar aquilo que posteriormente se viveu. Irónica e certeiramente, foi Schlegel que os apodou para toda a posteridade de "profetas do passado". O inefável JCNeves enfileira nesse grupo. Como todo o bom economista, joga com variáveis que ele próprio escolhe e depois ping-ponga com a sua verdade. Nada de surpreendente, pois não?
O facto de ele meter como bandeiras de ciclos os Solnados, os Hermans e o Gato Fedorento, deve ser apenas uma tentativa de conferir um tom mais populista e facilitador ao artigo. É o que está a dar. Infantilização da sociedade a mais não poder ser. Para quem é, bacalhau basta, e dá cá, ó DN, aquilo que nós combinámos.