2006-04-29

o cravo e a ferradura


cravos de quem quer bem


Decerto que os Amigos leitores do Ditos não se esqueceram do cravo, nem se esqueçam do megafone para as palavras de ordem proletárias do próximo Primeiro de Maio... eh eh !

Graçolas à parte, pode afirmar-se que o cravo é apenas uma flor (bem, uma palavra também é apenas uma palavra mas por vezes pode muito, pode ser um punhal ou talvez mesmo... causar uma revolução?) e em Abril há cravos, é a natureza a florir sem intenções!

Mas para as sociedades humanas até um simples cravo pode ganhar um significado especial. Por exemplo, em 25 de Abril de 1974, o povo que acompanhava in situ e in loco as operações militares na baixa lisboeta, onde exercem actividade muitas “vendedeiras” de flores, aproveitou o belo colorido das ditas então disponíveis, à venda – era Abril, nada mais que isso - para enfeitar a festa popular em que se transformou a revolução dos Capitães e outros oficiais. O gesto é bonito e contagiante. Lisboa - primeiro e todo o país depois – aderiu ao cravo. Por ser prático. Havia cravos. Primeiro, porque era a flor do dia. Depois, pela beleza estética, pelo crescente significado de associação à alegria da libertação e como símbolo da participação popular nos acontecimentos. Um dia fantástico. As pessoas vibraram. De emoção. Também de dúvida ou mesmo de medo. Além dos cravos, houve também corrida a latas de conserva e outros abastecimentos alimentares de reserva. Desconhecia-se como poderia evoluir a revolta, havendo no ar o pólen primaveril de ânimos exaltados, nunca se sabe. Acabou mesmo por ser decretado um conjunto de medidas contra o açambarcamento, para evitar a espiral da rotura. Mas a generalização dos cravos pode também ser vista da perspectiva de um sentimento inconsciente e colectivo relativamente ao desenrolar da revolução. O povo sábio não quis arcar com as culpas devastadoras de não ter lutado o suficiente pela sua própria libertação. Esse é um grande valor e símbolo do cravo. Com os cravos ao peito dos transeuntes e na boca das armas dos soldados, o povão apropriou-se do pronunciamento militar e fez sua a revolução. As consequências não são despiciendas. Os alemães e os italianos ainda hoje calam fundo a passividade ou mesmo o apoio às ignóbeis ditaduras respectivas. A má consciência. Como foi possível a adesão de tão significativa parcela da população, durante tantos anos, a tão carnificentas ditaduras? E como se convive com isso pelo devir? Em Portugal, em Abril de 74, foi diferente. A ditadura caiu às mãos do descontentamento de militares mas o povão estava lá, na rua, para a libertação de cada alma florir em cada peito, tingido a vermelho mas pela cor das pétalas de uma singela flor popular. A revolução era toda nossa, do povo. Assim já não era só contra as condições das comissões de serviço na guerra no ultramar. Com o povo na rua e em cima dos carros de combate, a apoiar os revoltosos, a revolução tinha que ser levada às últimas consequências, sem cedências nem retrocessos. Tinha mesmo que derrubar o regime. E, obviamente, demitir os seus donos. Com a omnipresença do povo, a liberdade e a democracia não ficaram manchadas de sangue nem de culpa de um país inteiro, foram adoptadas pelo próprio povo. É isso o que cravo simples leva na lapela dos políticos e manifestantes nas comemorações da libertação. Do fim e da queda da ditadura, da guerra colonial, da censura, da denúncia, do medo, dos filhos ilegítimos, das mulheres inferiores aos homens na letra da injusta lei, da iliteracia crónica e do analfabetismo persistente, do agudo isolamento do país, das vidas clandestinas, dos julgamentos sem defesa e sem justiça, das detenções sem culpa só pelo crime de pensar livremente, dos assassinatos e torturas de Estado, do atraso económico, humano e social que o fascismo, o corporativismo e o nacionalismo serôdio reservavam ao país. No cravo, estão os que se bateram, muitos em troca da própria vida ou dos seus entes queridos, mas também os que protestavam alto ou baixinho, os que calavam funda a raiva e a revolta, os que calavam consentidamente, os que calavam em aprovação, os que ajudaram à festa dos vampiros mas entenderam mudar de rumo com o virar de página do regime. É fazer a revolução sem disparar. Porque ao lado de cada soldado estava um civil, cem civis, mil civis. Ao lado de cada arma estava Portugal. Não era preciso disparar, se estávamos todos ali. Expiadas as culpas. Eis o cravo. A flor da ablação do tiro no momento da revolução. O cravo é a vontade do povo. A expressão popular. Não é exclusivo das elites nem dos militares. Nem de importação. O cravo não é mercearia fina. É a espontaneidade dos transeuntes. É a flor da época. Prosaica. E garrida. Que enfeita as águas furtadas, os poiais de pedra lioz e os varandins de ferro das fachadas de azulejo das ruas e vielas dos bairros populares. Numa cerimónia política solene, o cravo na lapela é levar o povo no coração, junto ao pulsar que a recordação emociona dentro do peito. O cravo é o peito aberto, genuíno, à vista, oferecido. E quem não tem o peito aberto, genuíno, à vista, não o pode oferecer. Eis porque às vezes falta o cravo. Lembram-se de alguém que nunca usou cravo ao peito? Querem ver que estão para aí a pensar nalgum professor de finanças... jametinhamdito!

ou no que dá a ferradura presidencial ...

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observacoes sao bem vindas

1 comentário:

Anónimo disse...

E viva o cravo, António! Já tinha tido o endereço do seu blog, que comentei uma vez, e depois perdi-o, mas felizmente que o recuperei.
Este seu cravo é de cheiro, embora termine, como o outro, com uma no dito e outra na ferradura. Concordo no geral com o que diz e, principalmente, gosto de ver o seu patente entusiasmo 32 anos depois. Este seu é um cravo de desagravo. De desagravo das muitas tropelias que lhe têm feito. Obstinadamente, ele mantém-se florido e vermelho.
Os cravos são, como seria previsível, mais do 1º de Maio que se seguiu ao 25 de Abril do que propriamente do dia da Revolução. A 25, a agitação era tanta nalgumas partes de Lisboa e, por vezes, o perigo tão iminente, que os tempos não estavam exactamente para flores. Mas no 1º de Maio já tinham passado alguns dias, já se tinha processado o regresso de uns tantos ilustres - recordo-me de ter ido a Santa Apolónia esperar o Mário Soares e, salvo erro, tenho uns slides, um bocado manhosos, dessa ocasião.
O 1º de Maio de 1974 foi a manifestação mais empolgante que já alguma vez vi em Lisboa. Íamos todos na onda que nos levava pelas ruas fora como se não sentíssemos o chão que pisávamos. Parecia-nos que estávamos num estádio repleto de pessoas a manifestarem-se com tudo o que tinham à mão. Em vez de adeptos nas bancadas, tínhamos a população nas varandas das casas, de ambos os lados das ruas, de alto a baixo. Dos prédios vinham frenéticos vivas a Portugal, agitavam-se bandeiras e… cravos. No regresso da Avenida Rio de Janeiro, onde me juntei na varanda a uns primos que moram mesmo em frente ao portão do Estádio, vim com a minha mulher e, a certa altura, vi um polícia no passeio, impecavelmente uniformizado. Peguei no cravo que trazia e pedi ao "sô guarda" se se importava que eu lho pusesse ao peito, só para uma fotografia. Acedeu. Na altura, ainda tirei a chipala a preto e branco - estava-se então na mudança mais generalizada para a cor - mas lembro-me bem do momento.
Há cerca de dois meses ouvi o Vasco Lourenço e o Almirante Guerreiro dizerem numa conferência para umas quinze ou vinte pessoas que o facto de o povo estar nas ruas - algo que muito temiam - acabou por contribuir imenso para o êxito da revolução. Foi o voto das ruas. Espontâneo. De facto, logrou transformar uma revolta de capitães contra a guerra colonial num golpe de devolução da liberdade ao povo. Aí os militares passaram a ser, para a maioria, os ganhadores da reconquista da liberdade. Mesmo a perda das colónias acabou mais tarde por recair sobre os ombros de civis como o Mário Soares e o Almeida Santos, o que foi injusto e não correspondeu à verdade. Enfim, o que lá vai, lá vai.
Viva o cravo, António, e aquilo que ele simboliza!