próprio de sistemas totalitários e ditaduras torcionárias, o suplício das chibatadas referencia-se na barbárie medieval do feudalismo e do absolutismo não iluminado, quer na componente de castigo corporal quer na vertente de humilhação do visado, quer na ostentação pública de poderio do soberano algoz - incluindo a misericórdia (o poder de graça, no direito medieval português) de fazer rever ou anular a sentença, de preferência antes ou durante a execução da ignominiosa pena
no elenco de punições das Ordenações Filipinas, talvez menos bárbaras que as Afonsinas e as Manuelinas, ainda constava o recurso ao açoite, geralmente reservado às classes mais baixas (os nobres iam para o degredo; aliás, já na antiguidade, o chicoteamento era muitas vezes reservado aos escravos, aos estrangeiros, aos cristãos, etc) e muitas vezes em substituição ou complemento de penas pecuniárias ou dívidas não pagas e, sim, quase sempre com carácter público, pela exemplaridade (e gáudio) da populaça e para manchar o visado, pela exposição vexatória, além da demonstração expressa do poder do soberano ou do carrasco seu representante
há até um episódio, relatado por José Hermano Saraiva, em que um desertor é condenado (talvez pela justiça militar) a cem ou duzentas chibatadas e, à semelhança do actual tenebroso caso da Arábia Saudita, teve que se interromper a tortura, pela evidência da desproporção, uma vez que a aplicação integral da punição implicaria o massacre do desgraçado até à morte - e ainda ficaria a dever chibatadas...
já na segunda metade do século XVIII, o milanês Beccaria (marquês de, pois chamava-se Cesare Bonesana) propôs, numa obra fundadora - o «Tratado dos delitos e das penas», salvo erro - a abolição das penas corporais (embora a prisão, enquanto privação física da liberdade, também seja "corporal") como as mutilações e os suplícios, incluindo chibatadas e chicotadas, também recursos para "arrancar" confissões ou para agravar a pena de morte (que podia ser "cruel" ou, ainda pior, "atroz", a que podia acrescer a proibição de sepultura, confisco dos bens - os herdeiros eram deserdados - e a má fama sobre a memória do visado ou da sua família), porém crescentemente consideradas pura barbárie e, segundo a cuidadosa fundamentação oferecida, contraproducente à realização da justiça - os inocentes mais fracos confessavam e os culpados mais fortes resistiam... como aliás seria de prever
as cuidadas e, à luz da civilização, da inteligência e do humanismo, irrebatíveis teorias de Beccaria fizeram escola, desde logo junto dos vultos intelectuais franceses da época (entre outros, Voltaire, Hume e Diderot - curiosamente, o da liberdade de imprensa - "Sur la liberté de la presse" - e da "Lettre sur le commerce de la librairie", além, é claro, da verdadeira e primeira Enciclopédia!) e depois em diversas alterações da legislação (e do movimento codificador) penal de diversos países europeus - embora a Prússia, a Rússia e outros Estados tivessem mantido o suplício até bastante mais tarde; o Brasil, por exemplo, até 1910! e ainda hoje subsiste em demasiados países no mundo, em vários PAOLP ainda subsistia na legislação até quase ao fim do século XX, casos da Guiné e de Moçambique, embora desconheça a sua aplicação
em Portugal o primeiro Código Penal, de 1852, já não contemplava castigos corporais, como as ditas chicotadas ou chibatadas, embora mantivesse o degredo e os trabalhos forçados, creio que até 1954, se bem que por decreto de 1932 se eliminasse o envio de condenados para Angola, mas bem sabemos que havia funcionários públicos ou militares que iam lá parar por... castigo!
aliás, o degredo (com ou sem trabalhos forçados) é muito curioso, pelo utilitarismo do povoamento, primeiro das terras recônditas (os coutos) de Portugal, depois de 1415 (Ceuta) nas possessões e colónias sucessivamente encontradas e exploradas, também com multifuncionalidade: punição física (afastamento) e exemplar (visibilidade) mais o respectivo aproveitamento económico, seja nas galés seja nos povoamentos e actividades empreendidas no ultramar português ou mesmo em "serviços" arriscados como a espionagem, com clara manifestação do poderio régio, incluindo a possibilidade de recuperação dos direitos (patrimoniais, nomeadamente , pois o degredado poderia eventualmente fazer fortuna e talvez regressar rico!) e da honra - havia inúmeras súplicas, havendo registo de muitos casos em que foram atendidas, sobretudo passado algum tempo e bons serviços
e, glória, além de se ter tentado uns anos antes, em projecto de Comissão anteriormente nomeada para a revisão das leis penais, certo é que com o Código Penal de 1867 Portugal foi o primeiro Estado a abolir a pena de morte, para crimes civis - em absoluto só em 1911, creio
oxalá este lamentável caso seja rapidamente revertido em justiça e possa suscitar celeuma suficiente - além do indispensável debate sobre a liberdade de expressão, que urge consagrar universalmente na prática pois já consta (desde 1948!) na Declaração Universal dos Direitos Humanos - para acabar com as práticas de tortura e barbárie a coberto de leis penais inconcebíveis no século XXI em qualquer parte do mundo, a bem da civilização e da humanidade!!!
Artigo 19.º *
Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.
Preâmbulo
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;
Considerando que o desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os seres humanos sejam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria, foi proclamado como a mais alta inspiração do homem;
observações são bem vindas, obrigado ;_)))