2010-12-13

Pai-Natal


o Natal, já se sabe, é quando queira um Homem de agá grande

mas nem sempre queremos ver onde o vazio enche de fome tantos quantos minguam sem ter nem haver

se ao menos o renascer do Menino nos abrir o coração para os ver, os olhos para os conhecer e as mãos para lhes tocar, Seremos por Ventura, seus irmãos

na era da especulação e da espectacularidade, nem tudo é consumo e entretenimento, é bom que haja pensamentos elevados, ideias com sentido, espírito crítico, acção realizadora e impulso de mudança

em 1964, a revista "Notícia", de Angola, seleccionou poucos versos natalícios de entre grande quantidade de produção alusiva à época - o que se diria hoje em que só em Portugal se publicam 44 livros por dia, a maior parte dos quais vende apenas escassos exemplares no próprio acto do lançamento, além da extraordinária profusão de edições on line, mais ou menos avulsas e porventura ainda mais efémeras - e respigou um poema publicado em "O Namibe", um verdadeiro jametinhasdito de alerta que se mantém actual e que aqui fica com o devido agradecimento à amabilidade e dinamismo de divulgação cultural da Dra. Ivone Vilares e à preservação da memória e espírito de partilha da escritora Maria de Lourdes Antunes

PAI NATAL

Pai-Natal,

Gorducho como és,

Com esse ventre obeso,

Como podes passar nas chaminés

Sem ficar preso?


E como podes inda sem perigo,

Com essas botas grossas, quando avanças,

Não perturbar o sono das crianças

Que adormeceram a sonhar contigo ?!


Como podes passar,

Com essas barbas grandes e nevadas,

Sem medo de assustar

Crianças que se encontrem acordadas ?


Eu sei, eu digo-te a razão,

Embora se me parta o coração !


É porque tu, risonho Pai-Natal,

Só entras em palácios de cristal,

Por chaminés de mármores e jade,

Onde o rotundo ventre

Passe, deslize e entre

Libérrimo, em perfeito à vontade !


Como podem as botas vigorosas

Rangerem um momento

Se alcatifas caras, preciosas,

Se espreguiçam por todo o pavimento!


Nem podes assustar

Crianças que se encontrem acordadas

Porque tens o cuidado de tirar

Essas revoltas barbas tão nevadas !


E assim é,

Risonho Pai-Natal de riso e gestos ledos,

Vais aos palácios ricos por teu pé,

Vasar o grande saco de brinquedos !


Antes fosses, risonho Pai-Natal,

Na noite friorenta, de portal em portal,

De tormenta em tormenta!

E descesses aos lares pobrezinhos,

Onde há doridas mães talvez chorando

Ao seio acalentando

Os pálidos filhinhos !

Ou fosses campo em fora em longas caminhadas,

A descobrir crianças sem abrigo,

Adormecidas nuas e geladas

E inda a sonhar contigo!


Mas não são esses, não, os teus caminhos,

Tu que vestes veludos e arminhos !


Quando Jesus nasceu,

No rigoroso frio do Inverno,

Nu e natural,

Sem outra bênção que o olhar materno,

Sem mais calor que um bafo irracional,

Onde é que estavas tu, Oh ! Pai-Natal ?!

Por onde andavas tu, Oh ! Pai-Natal ?!


Sei bem onde é que estavas !

Sei bem por onde andavas !


Andavas entre risos e folguedos,

Já com as barbas brancas e os bigodes,

A despejar o saco de brinquedos

_Na chaminé de Herodes!...


Angelino da Silva Jardim

Publicado em “O Namibe” e na revista “Notícia”, em Angola, 1964


observações são bem vindas ;->>>

5 comentários:

Anónimo disse...

Visão multifacetada da missão do Pai Natal, mostrando a sua unilateralidade. Referência sentida aos grupos dos excluídos. É um escrito que data de três anos após o início da guerra colonial em Angola, numa sociedade que estava necessariamente a ser abalada pelo conflito.
Documento bem escolhido, António.
jmco

zeka disse...

Passados quarenta e tal anos... o Pai Natal não aprendeu a lição :-(

Será analfa-beto ;-))

argumentonio disse...

jmco - sim, havia a guerra mas porventura em alguns sítios do interior angolano subsistia o sabor amargo e a coragem de o exprimir, por sinal com talento, graça e poesia, ante factos que germinavam e já caracterizavam a quadra natalícia, em que os afectos se exaltam, com naturalidade sublimados a bem querer mas deslizando de modo mais ou menos visível para uma postura egocêntrica e desvirtuadora do espírito solidário e humanista que afinal pretendia assinalar

zeka - nem é pelos quarentas e tais que muito agravaram, designadamente no retrocesso de África ou no reverso da multiplicação de Pais-Natais que infestam os centros comerciais e os anúncios intermináveis que nos impingem todos os anos desde Outubro - é mesmo desde há 2010 anos que a cegarrega carrega o saco das promessas esquecendo os necessitados e deseducando os que mais têm


obrigado a ambos pelas atenções e amigas contribuições, com os votos mais ditosos de uma excelente quadra festiva e um óptimo 2011

Sofá Amarelo disse...

Uma dádiva ouvir esse poema dito pelo João Completo... mais ainda vindo de um tempo que a memória do tempo não apagou!

Até quando durará a dicotomia Pai-Natal / Menino Jesus???

zeka disse...

.
Fica um sentido registo do bom que seria que fosse, porque não é, não sendo para todos. Homens e dias.
Gratos ficamos. Que 2011 seja bem decente, que de sente mal sobrou o que passou.